A Intermediação de Maria Mãe dos Homens
para nos levar ao Cordeiro de Deus

'O ROSÁRIO É A VIDA DE CRISTO CONTEMPLADA COM O OLHAR DE MARIA'
"
Maria é aquela que nos acompanha na escuridão da noite até o clarear do novo dia”

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                                                   Criado em 30 de março de 2005

 

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86 ANOS DE GRAÇAS E BÊNÇÃOS no Brasil e no mundo

LAUDATO SI - Encíclica do Papa Francisco

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Francisco Encíclicas
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                                                             CARTA ENCÍCLICA
                                                                LAUDATO SI’
                                                                   DO SANTO PADRE FRANCISCO
                                                                SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM


1. «LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor», cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: «louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras».[1]

2. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm. 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn. 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.

Nada deste mundo nos é indiferente

3. Mais de cinquenta anos atrás, quando o mundo estava oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo Papa João XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris a todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade. Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium, escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum.

4. Oito anos depois da Pacem in terris, em 1971, o Beato Papa Paulo VI referiu-se à problemática ecológica, apresentando-a como uma crise que é «consequência dramática» da atividade descontrolada do ser humano: «Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação».[2] E, dirigindo-se à FAO, falou da possibilidade duma «catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial», sublinhando a «necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade», porque «os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem».[3]

5. São João Paulo II debruçou-se, com interesse sempre maior, sobre este tema. Na sua primeira encíclica, advertiu que o ser humano parece «não dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um uso ou consumo imediatos».[4] Mais tarde, convidou a uma conversão ecológica global.[5] Entretanto fazia notar o pouco empenho que se põe em «salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana».[6] A destruição do ambiente humano é um fato muito grave, porque, por um lado, Deus confiou o mundo ao ser humano e, por outro, a própria vida humana é um dom que deve ser protegido de várias formas de degradação. Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas «nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades».[7] O progresso humano autêntico possui um caráter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao mundo natural e «ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado».[8] Assim, a capacidade do ser humano transformar a realidade deve desenvolver-se com base na doação originária das coisas por parte de Deus.[9]

6. O meu predecessor, Bento XVI, renovou o convite a «eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente».[10] Lembrou que o mundo não pode ser analisado concentrando-se apenas sobre um dos seus aspectos, porque «o livro da natureza é uno e indivisível», incluindo, entre outras coisas, o ambiente, a vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. É que «a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana».[11] O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável; o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas se ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se que «o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza».[12] Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida «onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos».[13]

Unidos por uma preocupação comum

7. Estas contribuições dos Papas recolhem a reflexão de inúmeros cientistas, filósofos, teólogos e organizações sociais que enriqueceram o pensamento da Igreja sobre estas questões. Mas não podemos ignorar que, também fora da Igreja Católica, noutras Igrejas e Comunidades cristãs – bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas que a todos nos estão a peito. Apenas para dar um exemplo particularmente significativo, quero retomar brevemente parte da contribuição do amado Patriarca Ecumênico Bartolomeu, com quem partilhamos a esperança da plena comunhão eclesial.

8. O Patriarca Bartolomeu tem-se referido particularmente à necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de maltratar o planeta, porque «todos, na medida em que causamos pequenos danos ecológicos», somos chamados a reconhecer «a nossa contribuição – pequena ou grande – para a desfiguração e destruição do ambiente».[14] Sobre este ponto, ele pronunciou-se repetidamente, de maneira firme e encorajadora, convidando-nos a reconhecer os pecados contra a criação: «Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas úmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar... tudo isso é pecado».[15] Porque «um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus».[16]

9. Ao mesmo tempo Bartolomeu chamou a atenção para as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos convidam a encontrar soluções não só na técnica mas também numa mudança do ser humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas. Propôs-nos passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de partilha, numa ascese que «significa aprender a dar, e não simplesmente renunciar. É um modo de amar, de passar pouco a pouco do que eu quero àquilo de que o mundo de Deus precisa. É libertação do medo, da avidez, da dependência».[17] Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo numa escala global. É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso planeta».[18]

São Francisco de Assis

10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.

11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a reação de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas. Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão».[19] A sua reação ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo econômico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele, «enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos e irmãs».[20] Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio.

12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade: «Na grandeza e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador» (Sab 13, 5) e «o que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras» (Rm. 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as ervas silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a Deus, autor de tanta beleza.[21] O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor.

O meu apelo

13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados sectores da atividade humana, estão a trabalhar para garantir a proteção da casa que partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos.

14. Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo gerado numerosas agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização. Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade universal. Como disseram os bispos da África do Sul, «são necessários os talentos e o envolvimento de todos para reparar o dano causado pelos humanos sobre a criação de Deus».[22] Todos podemos colaborar, como instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades.

15. Espero que esta carta encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente. Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da atual crise ecológica, com o objetivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido. A partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois procurarei chegar às raízes da situação atual, de modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas mais profundas. Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia. À luz desta reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes linhas de diálogo e de ação que envolvem seja cada um de nós seja a política internacional. Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã.

16. Embora cada capítulo tenha a sua temática própria e uma metodologia específica, o sucessivo retoma por sua vez, a partir duma nova perspectiva, questões importantes abordadas nos capítulos anteriores. Isto diz respeito especialmente a alguns eixos que atravessam a encíclica inteira. Por exemplo: a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta dum novo estilo de vida. Estes temas nunca se dão por encerrados nem se abandonam, mas são constantemente retomados e enriquecidos.

2. A questão da água

27. Outros indicadores da situação atual têm a ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos sectores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza.

28. A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes de água doce fornecem os sectores sanitários, agropecuários e industriais. A disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves consequências a curto e longo prazo. Grandes cidades, que dependem de importantes reservas hídricas, sofrem períodos de carência do recurso, que, nos momentos críticos, nem sempre se administra com uma gestão adequada e com imparcialidade. A pobreza da água pública verifica-se especialmente na África, onde grandes sectores da população não têm acesso a água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil a produção de alimento. Nalguns países, há regiões com abundância de água, enquanto outras sofrem de grave escassez.

29. Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças relacionadas com a água, incluindo as causadas por micro-organismos e substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água inadequados, constituem um fator significativo de sofrimento e mortalidade infantil. Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares.

30. Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável. Esta dívida é parcialmente saldada com maiores contribuições econômicas para prover de água limpa e saneamento as populações mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade.

31. Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século.[23]

3. Perda de biodiversidade

32. Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a atividade comercial e produtiva. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies contêm genes que podem ser recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou regular algum problema ambiental.

33. Entretanto não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais «recursos» exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer.

34. Possivelmente perturba-nos saber da extinção dum mamífero ou duma ave, pela sua maior visibilidade; mas, para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e a variedade inumerável de micro-organismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função sensória fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano deve intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de intervenção humana numa realidade tão complexa como a natureza é tal, que os desastres constantes causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção dele de modo que a atividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos que isto implica. Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção humana, para resolver uma dificuldade, muitas vezes ainda agrava mais a situação. Por exemplo, muitos pássaros e insetos, que desaparecem por causa dos agrotóxicos criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o seu desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica que possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às vezes, admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de que este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza insuprível e irrecuperável por outra criada por nós.

35. Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer iniciativa econômica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os novos cultivos, as reservas, as barragens e outras construções vão tomando posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as populações de animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo que algumas espécies correm o risco de extinção. Existem alternativas que, pelo menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de corredores biológicos, mas são poucos os países em que se adverte este cuidado e prevenção. Quando se explora comercialmente algumas espécies, nem sempre se estuda a sua modalidade de crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e consequente desequilíbrio do ecossistema.

36. O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício econômico que se possa obter. No caso da perda ou dano grave de algumas espécies, fala-se de valores que excedem todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental.

37. Alguns países fizeram progressos na conservação eficaz de certos lugares e áreas – na terra e nos oceanos –, proibindo aí toda a intervenção humana que possa modificar a sua fisionomia ou alterar a sua constituição original. No cuidado da biodiversidade, os especialistas insistem na necessidade de prestar uma especial atenção às áreas mais ricas em variedade de espécies, em espécies endêmicas, raras ou com menor grau de efetiva proteção. Há lugares que requerem um cuidado particular pela sua enorme importância para o ecossistema mundial, ou que constituem significativas reservas de água assegurando assim outras formas de vida.

38. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os enormes interesses econômicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há «propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais».[24] É louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais.

39. Habitualmente também não se faz objeto de adequada análise a substituição da flora silvestre por áreas florestais com árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode afetar gravemente uma biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se implantam. Também as zonas úmidas, que são transformadas em terrenos agrícolas, perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante, nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento dos ecossistemas constituídos por manguezais.

40. Os oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para nós e ameaçados por diversas causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre grande parte da população mundial, é afetada pela extração descontrolada dos recursos éticos, que provoca drásticas diminuições de algumas espécies. E no entanto continuam a desenvolver-se modalidades seletivas de pesca, que descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente ameaçados estão organismos marinhos que não temos em consideração, como certas formas de plâncton que constituem um componente muito importante da cadeia alimentar marinha e de que dependem, em última instância, espécies que se utilizam para a alimentação humana.

41. Passando aos mares tropicais e subtropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado contínuo de declínio: «quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor»? [25]. Este fenômeno deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar resultante do desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo aumento da temperatura dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a compreender como qualquer ação sobre a natureza pode ter consequências que não advertimos à primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se obtêm à custa duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos.

42. É preciso investir muito mais na pesquisa para se entender melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. Cada território detém uma parte de responsabilidade no cuidado desta família, pelo que deve fazer um inventário cuidadoso das espécies que alberga a fim de desenvolver programas e estratégias de proteção, cuidando com particular solicitude das espécies em vias de extinção.

4. Deterioração da qualidade de vida humana e degradação social

43. Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas.

44. Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas mas também ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição visiva e acústica. Muitas cidades são grandes estruturas que não funcionam, gastando energia e água em excesso. Há bairros que, embora construídos recentemente, apresentam-se congestionados e desordenados, sem espaços verdes suficientes. Não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contacto físico com a natureza.

45. Nalguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos espaços tornou difícil o acesso dos cidadãos a áreas de especial beleza; noutros, criaram-se áreas residenciais «ecológicas» postas à disposição só de poucos, procurando-se evitar que outros entrem a perturbar uma tranquilidade artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e cheia de espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas «seguras», mas não em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da sociedade.

46. Entre os componentes sociais da mudança global, incluem-se os efeitos laborais de algumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo da energia e doutros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o aparecimento de novas formas de agressividade social, o narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de identidade. São alguns sinais, entre outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso integral e uma melhoria da qualidade de vida. Alguns destes sinais são ao mesmo tempo sintomas duma verdadeira degradação social, duma silenciosa ruptura dos vínculos de integração e comunhão social.

47. A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do mundo digital, que, quando se tornam omnipresentes, não favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo tempo tendem a substituir as relações reais com os outros, com todos os desafios que implicam, por um tipo de comunicação mediada pela internet. Isto permite selecionar ou eliminar a nosso arbítrio as relações e, deste modo, frequentemente gera-se um novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as pessoas e a natureza. Os meios atuais permitem-nos comunicar e partilhar conhecimentos e afetos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar contacto direto com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o fato de, a par da oferta sufocante destes produtos, ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento.

5. Desigualdade planetária

48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De fato, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres».[26] Por exemplo, o esgotamento das reservas éticas prejudica especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir, a poluição da água afeta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios Atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais.[27]

49. Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e econômicos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta, permanecem frequentemente no último lugar. Isto deve-se, em parte, ao fato de que muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contacto direto com os seus problemas. Vivem e refletem a partir da comodidade dum desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao alcance da maioria da população mundial. Esta falta de contacto físico e de encontro, às vezes favorecida pela fragmentação das nossas cidades, ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas. Isto, às vezes, coexiste com um discurso «verde». Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.

50. Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que condicionam as ajudas econômicas a determinadas políticas de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário».[28] Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo atual, no qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre».[29] Em todo o caso, é verdade que devemos prestar atenção ao desequilíbrio na distribuição da população pelo território, tanto a nível nacional como a nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a situações regionais complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de recursos, à qualidade de vida.

51. A desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extração mineraria do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre. De modo especial é preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta usado para depositar resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de dois séculos e criaram uma situação que agora afeta todos os países do mundo. O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e pela atividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital: «Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar».[30]

52. A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro. A terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o acesso à propriedade de bens e recursos para satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso. É necessário que os países desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável. As regiões e os países mais pobres têm menos possibilidade de adotar novos modelos de redução do impacto ambiental, porque não têm a preparação para desenvolver os processos necessários nem podem cobrir os seus custos. Por isso, deve-se manter claramente a consciência de que a mudança climática tem responsabilidades diversificadas e, como disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais poderosos».[31] É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença.

6. A fraqueza das reações

53. Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos. Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos de Deus Pai para que o nosso planeta seja o que Ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projeto de paz, beleza e plenitude. O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações atuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações futuras. Torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-econômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça.

54. Preocupa a fraqueza da reação política internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não ver afetados os seus projetos. Nesta linha, o Documento de Aparecida pede que, «nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos econômicos que arrasam irracionalmente as fontes da vida».[32] A aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos seus interesses imediatos. Deste modo, poder-se-á esperar apenas algumas proclamações superficiais, ações filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das organizações sociais para alterar as coisas será vista como um distúrbio provocado por sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar.

55. Pouco a pouco alguns países podem mostrar progressos significativos, o desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a corrupção. Cresceu a sensibilidade ecológica das populações, mas é ainda insuficiente para mudar os hábitos nocivos de consumo, que não parecem diminuir; antes, expandem-se e desenvolvem-se. É o que acontece – só para dar um exemplo simples – com o crescente aumento do uso e intensidade dos condicionadores de ar: os mercados, apostando num ganho imediato, estimulam ainda mais a procura. Se alguém observasse de fora a sociedade planetária, maravilhar-se-ia com tal comportamento que às vezes parece suicida.

56. Entretanto os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar ações imorais, porque a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito. Por isso, hoje, «qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta».[33]

57. É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, «não obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química, bacteriológica e biológica, subsiste o fato de continuarem nos laboratórios as pesquisas para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais».[34] Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e resolver as causas que podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder, ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal esforço, e os projetos políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?
58. Nalguns países, há exemplos positivos de resultados na melhoria do ambiente, tais como o saneamento de alguns rios que foram poluídos durante muitas décadas, a recuperação de florestas nativas, o embelezamento de paisagens com obras de saneamento ambiental, projetos de edifícios de grande valor estético, progressos na produção de energia limpa, na melhoria dos transportes públicos. Estas ações não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e desvelo.

59. Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial ou aparente que consolida um certo torpor e uma alegre irresponsabilidade. Como frequentemente acontece em épocas de crises profundas, que exigem decisões corajosas, somos tentados a pensar que aquilo que está a acontecer não é verdade. Se nos detivermos na superfície, para além de alguns sinais visíveis de poluição e degradação, parece que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido.

7. Diversidade de opiniões

60. Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis soluções, que se desenvolveram diferentes perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o ser humano, com qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não existe só um caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se chegar a respostas abrangentes.

61. Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende que deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade, para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia parece notar-se sintomas dum ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação, que se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se podem analisar nem explicar de forma isolada. Há regiões que já se encontram particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da ação humana: «Se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a expectativa divina».[35]

parte 2

 O Terço (Rosário) dos Homens não exige nada e não cobra nada da vida pessoal dos seus participantes, o que faz com que seus membros se sintam livres, e a liberdade dá ao homem o poder de ser aquilo que ele deseja ser, daí as transformações se sucederem de modo espontâneo causado pelo contato que os mesmos passam a ter com Deus por intercessão de Maria.