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78 ANOS DE GRAÇAS E
BÊNÇÃOS
no Brasil e no mundo
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CAPÍTULO II
O EVANGELHO DA CRIAÇÃO
62. Por que motivo incluir, neste documento dirigido a
todas as pessoas de boa vontade, um capítulo referido às
convicções de fé? Não ignoro que alguns, no campo da
política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia
de um Criador ou consideram-na irrelevante, chegando ao
ponto de relegar para o reino do irracional a riqueza que
as religiões possam oferecer para uma ecologia integral e
o pleno desenvolvimento do gênero humano; outras vezes,
supõe-se que elas constituam uma subcultura, que se deve
simplesmente tolerar. Todavia a ciência e a religião, que
fornecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar
num diálogo intenso e frutuoso para ambas.
1. A luz que a fé oferece
63. Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica
e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as
soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e
transformar a realidade. É necessário recorrer também às
diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia,
à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de
verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar
tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências
e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem
sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria.
Além disso, a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o
pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias
sínteses entre fé e razão. No que diz respeito às questões
sociais, pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento
da doutrina social da Igreja, chamada a enriquecer-se cada
vez mais a partir dos novos desafios.
64. Por outro lado, embora esta encíclica se abra a um
diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de
libertação, quero mostrar desde o início como as
convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em parte,
também a outros crentes – motivações altas para cuidar da
natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo
simples fato de ser humanas, as pessoas se sentem movidas
a cuidar do ambiente de que fazem parte, «os cristãos, em
particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e
os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem
parte da sua fé».[36] Por isso é bom, para a humanidade e
para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os
compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções.
2. A sabedoria das narrações bíblicas
65. Sem repropor aqui toda a teologia da Criação, queremos
saber o que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre
a relação do ser humano com o mundo. Na primeira narração
da obra criadora, no livro do Genesis, o plano de Deus
inclui a criação da humanidade. Depois da criação do homem
e da mulher, diz-se que «Deus, vendo a sua obra,
considerou-a muito boa» (Gn 1, 31). A Bíblia ensina que
cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e
semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta afirmação
mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana, que
«não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se
conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em
comunhão com outras pessoas».[37] São João Paulo II
recordou que o amor muito especial que o Criador tem por
cada ser humano «confere-lhe uma dignidade infinita».[38]
Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade
das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais
profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a
certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos
desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por
ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a
cada um de nós: «Antes de te haver formado no ventre
materno, Eu já te conhecia» (Jr 1, 5). Fomos concebidos no
coração de Deus e, por isso, «cada um de nós é o fruto de
um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um
de nós é amado, cada um é necessário».[39]
66. As narrações da criação no livro do Genesis contêm, na
sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos
profundos sobre a existência humana e a sua realidade
histórica. Estas narrações sugerem que a existência humana
se baseia sobre três relações fundamentais intimamente
ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a
terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais
romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de
nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador,
a humanidade e toda a criação foi destruída por termos
pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando
reconhecer-nos como criaturas limitadas. Este fato
distorceu também a natureza do mandato de «dominar» a
terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e guardar» (cf. Gn
2, 15). Como resultado, a relação originariamente
harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se
num conflito (cf. Gn 3, 17-19). Por isso, é significativo
que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas
as criaturas tenha sido interpretada como uma sanação
daquela ruptura. Dizia São Boaventura que, através da
reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco
voltara de alguma forma ao estado de inocência
original.[40] Longe deste modelo, o pecado manifesta-se
hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas
várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais
frágeis, nos ataques contra a natureza.
67. Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos
dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra
o pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do
Genesis, que convida a «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28),
favoreceria a exploração selvagem da natureza,
apresentando uma imagem do ser humano como dominador e
devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da
Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós,
cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta
as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do
fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de
dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as
outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no
seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que
nos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (cf.
Gn 2, 15). Enquanto «cultivar» quer dizer lavrar ou
trabalhar um terreno, «guardar» significa proteger,
cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de
reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza.
Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de
que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o
dever de a proteger e garantir a continuidade da sua
fertilidade para as gerações futuras. Em última análise,
«ao Senhor pertence a terra» (Sl 24/23, 1), a Ele pertence
«a terra e tudo o que nela existe» (Dt. 10, 14). Por isso,
Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta:
«Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a
terra pertence-Me, e vós sois apenas estrangeiros e meus
hóspedes» (Lv. 25, 23).
68. Esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus
implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite
as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os
seres deste mundo, porque «Ele deu uma ordem e tudo foi
criado; Ele fixou tudo pelos séculos sem fim e estabeleceu
leis a que não se pode fugir»! (Sl 148, 5b-6).
Consequentemente, a legislação bíblica detém-se a propor
ao ser humano várias normas relativas não só às outras
pessoas, mas também aos restantes seres vivos: «Se vires o
jumento do teu irmão ou o seu boi caídos no caminho, não
te desvies deles, mas ajuda-os a levantarem-se. (...) Se
encontrares no caminho, em cima de uma árvore ou no chão,
um ninho de pássaros com filhotes, ou ovos cobertos pela
mãe, não apanharás a mãe com a ninhada» (Dt. 22, 4.6).
Nesta linha, o descanso do sétimo dia não é proposto só
para o ser humano, mas «para que descansem o teu boi e o
teu jumento» (Ex. 23, 12). Assim nos damos conta de que a
Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que
se desinteressa das outras criaturas.
69. Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso responsável
das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros
seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, «pelo
simples fato de existirem, eles O bendizem e Lhe dão
glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em suas obras» (Sl
104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e por
ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a
respeitar a criação com as suas leis internas, já que «o
Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3, 19). Hoje, a
Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras
criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser
humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse
possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como
fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas,
«se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser
úteis».[42] O Catecismo põe em questão, de forma muito
direta e insistente, um antropocentrismo desordenado:
«Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias.
(...) As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio
ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da
sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o
homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura,
para evitar o uso desordenado das coisas».[43]
70. Na narração de Caim e Abel, vemos que a inveja levou
Caim a cometer a injustiça extrema contra o seu irmão.
Isto, por sua vez, provocou uma ruptura da relação entre
Caim e Deus e entre Caim e a terra, da qual foi exilado.
Esta passagem aparece sintetizada no dramático colóquio de
Deus com Caim. Deus pergunta: «Onde está o teu irmão
Abel?» Caim responde que não sabe, e Deus insiste com ele:
«Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra
até Mim. De futuro, serás amaldiçoado pela terra (…).
Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra» (Gn 4, 9-12). O
descuido no compromisso de cultivar e manter um correto
relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou
devedor da minha solicitude e custódia, destrói o
relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com
Deus e com a terra. Quando todas estas relações são
negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na
terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo.
Assim no-lo ensina a narração de Noé, quando Deus ameaça
acabar com a humanidade pela sua persistente incapacidade
de viver à altura das exigências da justiça e da paz: «O
fim de toda a humanidade chegou diante de Mim, pois ela
encheu a terra de violência» (Gn 6, 13). Nestas narrações
tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava
contida a convicção atual de que tudo está
inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria
vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da
fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros.
71. Embora Deus reconhecesse que «a maldade dos homens era
grande na terra» (Gn 6, 5), «arrependendo-Se de ter criado
o homem sobre a terra» (Gn 6, 6), Ele decidiu abrir um
caminho de salvação através de Noé, que ainda se mantinha
íntegro e justo. Assim deu à humanidade a possibilidade de
um novo início. Basta um homem bom para haver esperança! A
tradição bíblica estabelece claramente que esta
reabilitação implica a redescoberta e o respeito dos
ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto
está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo
dia, Deus descansou de todas as suas obras. Deus ordenou a
Israel que cada sétimo dia devia ser celebrado como um dia
de descanso, um Shabbath (cf. Gn. 2, 2-3; Ex. 16, 23; 20,
10). Além disso, de sete em sete anos, instaurou-se também
um ano sabático para Israel e a sua terra (cf. Lv. 25,
1-4), durante o qual se dava descanso completo à terra,
não se semeava e só se colhia o indispensável para
sobreviver e oferecer hospitalidade (cf. Lv. 25, 4-6). Por
fim, passadas sete semanas de anos, ou seja quarenta e
nove anos, celebrava-se o jubileu, um ano de perdão
universal, «proclamando na vossa terra a liberdade de
todos os que a habitam» (Lv. 25, 10). O desenvolvimento
desta legislação procurou assegurar o equilíbrio e a
equidade nas relações do ser humano com os outros e com a
terra onde vivia e trabalhava. Mas, ao mesmo tempo, era um
reconhecimento de que a dádiva da terra com os seus frutos
pertence a todo o povo. Aqueles que cultivavam e guardavam
o território deviam partilhar os seus frutos,
especialmente com os pobres, as viúvas, os órfãos e os
estrangeiros: «Quando procederes à ceifa das vossas
terras, não ceifarás as espigas até à extremidade do
campo, e não apanharás as espigas caídas. Não rebuscarás
também a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos.
Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro» (Lv. 19,
9-10).
72. Os Salmos convidam, frequentemente, o ser humano a
louvar a Deus criador: «Estendeu a terra sobre as águas,
porque o seu amor é eterno» (Sl. 136/135, 6). E convidam
também as outras criaturas a louvá-lo: «Louvai-O, sol e
lua; louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas dos
céus e águas que estais acima dos céus! Louvem todos o
nome do Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo foi
criado» (Sl. 148, 3-5). Existimos não só pelo poder de
Deus, mas também na sua presença e companhia. Por isso O
adoramos.
73. Os escritos dos profetas convidam a recuperar forças,
nos momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que
criou o universo. O poder infinito de Deus não nos leva a
escapar da sua ternura paterna, porque n’Ele se conjugam o
carinho e a força. Na verdade, toda a sã espiritualidade
implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar,
com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na
Bíblia, o Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o
universo, e estes dois modos de agir divino estão íntima e
inseparavelmente ligados: «Ah! Senhor Deus, foste Tu que
fizeste o céu e a terra com o teu grande poder e o teu
braço estendido! Para Ti, nada é impossível! (...) Tu
fizeste sair do Egito o teu povo, Israel, com prodígios e
milagres» (Jr. 32, 17. 21). «O Senhor é um Deus eterno,
que criou os confins da terra. Não se cansa nem perde as
forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá forças ao
cansado e enche de vigor o fraco» (Is. 40, 28b-29).
74. A experiência do cativeiro em Babilônia gerou uma
crise espiritual que levou a um aprofundamento da fé em
Deus, explicitando a sua omnipotência criadora, para
animar o povo a recuperar a esperança no meio da sua
situação infeliz. Séculos mais tarde, noutro momento de
prova e perseguição, quando o Império Romano procurou
impor um domínio absoluto, os fiéis voltaram a encontrar
consolação e esperança aumentando a sua confiança em Deus
omnipotente, e cantavam: «Grandes e admiráveis são as tuas
obras, Senhor Deus todo-poderoso! Justos e verdadeiros são
os teus caminhos!» (Ap. 15, 3). Se Deus pôde criar o
universo a partir do nada, também pode intervir neste
mundo e vencer qualquer forma de mal. Por isso, a
injustiça não é invencível.
75. Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça
Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por
adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no
lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem
limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de
colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua
pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a
propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo;
caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor
à realidade as suas próprias leis e interesses.
3. O mistério do universo
76. Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do
que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do
amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um
significado. A natureza entende-se habitualmente como um
sistema que se analisa, compreende e gere, mas a criação
só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas
do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor
que nos chama a uma comunhão universal.
77. «A palavra do Senhor criou os céus» (Sl. 33/32, 6).
Deste modo indica-se que o mundo procede, não do caos nem
do acaso, mas duma decisão, o que o exalta ainda mais. Há
uma opção livre, expressa na palavra criadora. O universo
não apareceu como resultado duma omnipotência arbitrária,
duma demonstração de força ou dum desejo de autoafirmação.
A criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a
razão fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto
existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se
odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11, 24).
Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe
atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais
insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos
segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho.
Dizia São Basílio Magno que o Criador é também «a bondade
sem cálculos»,[44] e Dante Alighieri falava do «amor que
move o sol e as outras estrelas».[45] Por isso, das obras
criadas pode-se subir «à sua amorosa misericórdia».[46]
78. Ao mesmo tempo, o pensamento judaico-cristão
desmitificou a natureza. Sem deixar de a admirar pelo seu
esplendor e imensidão, já não lhe atribui um caráter
divino. Deste modo, ressalta ainda mais o nosso
compromisso para com ela. Um regresso à natureza não pode
ser feito à custa da liberdade e da responsabilidade do
ser humano, que é parte do mundo com o dever de cultivar
as próprias capacidades para o proteger e desenvolver as
suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a
fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades
que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o
mito moderno do progresso material ilimitado. Um mundo
frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do
mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como
deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder.
79. Neste universo, composto por sistemas abertos que
entram em comunicação uns com os outros, podemos descobrir
inumeráveis formas de relação e participação. Isto
leva-nos também a pensar o todo como aberto à
transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé
permite-nos interpretar o significado e a beleza
misteriosa do que acontece. A liberdade humana pode
prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução
positiva, como pode também acrescentar novos males, novas
causas de sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar
à apaixonante e dramática história humana, capaz de
transformar-se num desabrochamento de libertação,
engrandecimento, salvação e amor, ou, pelo contrário, num
percurso de declínio e mútua destruição. Por isso a
Igreja, com a sua ação, procura não só lembrar o dever de
cuidar da natureza, mas também e «sobretudo proteger o
homem da destruição de si mesmo».[47]
80. Apesar disso, Deus, que deseja atuar conosco e contar
com a nossa cooperação, é capaz também de tirar algo de
bom dos males que praticamos, porque «o Espírito Santo
possui uma inventiva infinita, própria da mente divina,
que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas
mais complexas e impenetráveis».[48] De certa maneira,
quis limitar-Se a Si mesmo, criando um mundo necessitado
de desenvolvimento, onde muitas coisas que consideramos
males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem
parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com
o Criador.[49] Ele está presente no mais íntimo de cada
coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto
dá lugar também à legítima autonomia das realidades
terrenas.[50] Esta presença divina, que garante a
permanência e o desenvolvimento de cada ser, «é a
continuação da ação criadora».[51] O Espírito de Deus
encheu o universo de potencialidades que permitem que, do
próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo:
«A natureza nada mais é do que a razão de certa arte –
concretamente a arte divina – inscrita nas coisas, pela
qual as próprias coisas se movem para um fim determinado.
Como se o mestre construtor de navios pudesse conceder à
madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar
a forma da nave». [52]
81. Embora suponha também processos evolutivos, o ser
humano implica uma novidade que não se explica cabalmente
pela evolução doutros sistemas abertos. Cada um de nós tem
em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo
com os outros e com o próprio Deus. A capacidade de
reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a
elaboração artística e outras capacidades originais
manifestam uma singularidade que transcende o âmbito
físico e biológico. A novidade qualitativa, implicada no
aparecimento dum ser pessoal dentro do universo material,
pressupõe uma ação direta de Deus, uma chamada peculiar à
vida e à relação de um Tu com outro tu. A partir dos
textos bíblicos, consideramos o ser humano como sujeito,
que nunca pode ser reduzido à categoria de objeto.
82. Mas seria errado também pensar que os outros seres
vivos devam ser considerados como meros objetos submetidos
ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma
visão da natureza unicamente como objeto de lucro e
interesse, isso comporta graves consequências também para
a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais
forte favoreceu imensas desigualdades, injustiças e
violências para a maior parte da humanidade, porque os
recursos tornam-se propriedade do primeiro que chega ou de
quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. O ideal de
harmonia, justiça, fraternidade e paz que Jesus propõe
situa-se nos antípodas de tal modelo, como Ele mesmo Se
expressou ao compará-lo com os poderes do seu tempo:
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus
senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder.
Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós
quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt. 20,
25-26).
83. A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de
Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro
da maturação universal.[53] E assim juntamos mais um
argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico
e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O
fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas
todas avançam, juntamente conosco e através de nós, para a
meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde
Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o
ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela
plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as
criaturas ao seu Criador.
4. A mensagem de cada criatura na harmonia de toda a
criação
84. O fato de insistir na afirmação de que o ser humano é
imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada
criatura tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o
universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu
carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas:
tudo é carícia de Deus. A história da própria amizade com
Deus desenrola-se sempre num espaço geográfico que se
torna um sinal muito pessoal, e cada um de nós guarda na
memória lugares cuja lembrança nos faz muito bem. Quem
cresceu no meio de montes, quem na infância se sentava
junto do riacho a beber, ou quem jogava numa praça do seu
bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a
recuperar a sua própria identidade.
85. Deus escreveu um livro estupendo, «cujas letras são
representadas pela multidão de criaturas presentes no
universo».[54] E justamente afirmaram os bispos do Canadá
que nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus:
«Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais
frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e
reverência. Trata-se duma contínua revelação do
divino».[55]Os bispos do Japão, por sua vez, disseram algo
muito sugestivo: «Sentir cada criatura que canta o hino da
sua existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na
esperança».[56] Esta contemplação da criação permite-nos
descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer
transmitir através de cada coisa, porque, «para o crente,
contemplar a criação significa também escutar uma
mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa».[57]
Podemos afirmar que, «ao lado da revelação propriamente
dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação
divina no despontar do sol e no cair da noite».[58]
Prestando atenção a esta manifestação, o ser humano
aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as
outras criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo;
exploro a minha sacralidade decifrando a do mundo».[59]
86. O conjunto do universo, com as suas múltiplas
relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. São
Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a
multiplicidade e a variedade «provêm da intenção do
primeiro agente», o Qual quis que «o que falta a cada
coisa, para representar a bondade divina, seja suprido
pelas outras»,[60] pois a sua bondade «não pode ser
convenientemente representada por uma só criatura».[61]
Por isso, precisamos de individuar a variedade das coisas
nas suas múltiplas relações.[62] Assim, compreende-se
melhor a importância e o significado de qualquer criatura,
se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus. Tal é o
ensinamento do Catecismo: «A interdependência das
criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a
florzinha, a águia e o pardal: o espetáculo das suas
incontáveis diversidades e desigualdades significa que
nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na
dependência umas das outras, para se completarem
mutuamente no serviço umas das outras».[63]
87. Quando nos damos conta do reflexo de Deus em tudo o
que existe, o coração experimenta o desejo de adorar o
Senhor por todas as suas criaturas e juntamente com elas,
como se vê neste gracioso cântico de São Francisco de
Assis:
«Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64]
88. Os bispos do Brasil sublinharam que toda a natureza,
além de manifestar Deus, é lugar da sua presença. Em cada
criatura, habita o seu Espírito vivificante, que nos chama
a um relacionamento com Ele.[65] A descoberta desta
presença estimula em nós o desenvolvimento das «virtudes
ecológicas».[66] Mas, quando dizemos isto, não esqueçamos
que há também uma distância infinita, pois as coisas deste
mundo não possuem a plenitude de Deus. Esquecê-lo, aliás,
também não faria bem às criaturas, porque não
reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio, acabando
por lhes exigir indevidamente aquilo que, na sua pequenez,
não nos podem dar.
5. Uma comunhão universal
89. As criaturas deste mundo não podem ser consideradas um
bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas a vida»
(Sab 11, 26). Isto gera a convicção de que nós e todos os
seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos
unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de
família universal, uma comunhão sublime que nos impele a
um respeito sagrado, amoroso e humilde. Quero lembrar que
«Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia,
que a desertificação do solo é como uma doença para cada
um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se
fosse uma mutilação».[67]
90. Isto não significa igualar todos os seres vivos e
tirar ao ser humano aquele seu valor peculiar que,
simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade.
Também não requer uma divinização da terra, que nos
privaria da nossa vocação de colaborar com ela e proteger
a sua fragilidade. Estas concepções acabariam por criar
novos desequilíbrios, na tentativa de fugir da realidade
que nos interpela.[68] Às vezes nota-se a obsessão de
negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se
uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora
de defender igual dignidade entre os seres humanos.
Devemos, certamente, ter a preocupação de que os outros
seres vivos não sejam tratados de forma irresponsável, mas
deveriam indignar-nos sobretudo as enormes desigualdades
que existem entre nós, porque continuamos a tolerar que
alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos
de notar que alguns se arrastam numa miséria degradante,
sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não
sabem sequer que fazer ao que têm, ostentam vaidosamente
uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de
desperdício tal que seria impossível generalizar sem
destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que
alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem
nascido com maiores direitos.
91. Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima
com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não
houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos
seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta
contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica
completamente indiferente perante o tráfico de pessoas,
desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser
humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta
pelo meio ambiente. Não é por acaso que São Francisco, no
cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o
seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que
perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por isso,
exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor
sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante
com os problemas da sociedade.
92. Além disso, quando o coração está verdadeiramente
aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica
excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também
que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas
deste mundo sempre acabam de alguma forma por
repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros
seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que
leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na
relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento
contra qualquer criatura «é contrário à dignidade
humana».[69] Não podemos considerar-nos grandes amantes da
realidade, se excluímos dos nossos interesses alguma parte
dela: «Paz, justiça e conservação da criação são três
questões absolutamente ligadas, que não se poderão
separar, tratando-as individualmente sob pena de cair
novamente no reducionismo».[70] Tudo está relacionado, e
todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e
irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo
amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos
une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua,
ao irmão rio e à mãe terra.
6. O destino comum dos bens
93. Hoje, crentes e não crentes estão de acordo que a
terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos
devem beneficiar a todos. Para os crentes, isto torna-se
uma questão de fidelidade ao Criador, porque Deus criou o
mundo para todos. Por conseguinte, toda a abordagem
ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha
em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos.
O princípio da subordinação da propriedade privada ao
destino universal dos bens e, consequentemente, o direito
universal ao seu uso é uma «regra de ouro» do
comportamento social e o «primeiro princípio de toda a
ordem ético-social».[71] A tradição cristã nunca
reconheceu como absoluto ou intocável o direito à
propriedade privada, e salientou a função social de
qualquer forma de propriedade privada. São João Paulo II
lembrou esta doutrina, com grande ênfase, dizendo que
«Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que ela
sustente todos os seus membros, sem excluir nem
privilegiar ninguém».[72] São palavras densas e fortes.
Insistiu que «não seria verdadeiramente digno do homem, um
tipo de desenvolvimento que não respeitasse e promovesse
os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e
políticos, incluindo os direitos das nações e dos
povos».[73]Com grande clareza, explicou que «a Igreja
defende, sim, o legítimo direito à propriedade privada,
mas ensina, com não menor clareza, que sobre toda a
propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social,
para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes
deu».[74] Por isso, afirma que «não é segundo o desígnio
de Deus gerir este dom de modo tal que os seus benefícios
aproveitem só a alguns poucos».[75] Isto põe seriamente em
discussão os hábitos injustos duma parte da
humanidade.[76]
94. O rico e o pobre têm igual dignidade, porque «quem os
fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2); «Ele criou o pequeno
e o grande» (Sab 6, 7) e «faz com que o sol se levante
sobre os bons e os maus» (Mt 5, 45). Isto tem
consequências práticas, como explicitaram os bispos do
Paraguai: «Cada camponês tem direito natural de possuir um
lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar,
trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de
segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma
garantido, que o seu exercício não seja ilusório mas real.
Isto significa que, além do título de propriedade, o
camponês deve contar com meios de formação técnica,
empréstimos, seguros e acesso ao mercado».[77]
95. O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda
a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma
parte é apenas para a administrar em benefício de todos.
Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de
negar a existência aos outros. Por isso, os bispos da Nova
Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o
mandamento «não matarás», quando «uns vinte por cento da
população mundial consomem recursos numa medida tal que
roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de
que necessitam para sobreviver».[78]
7. O olhar de Jesus
96. Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um
dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt. 11, 25). Em colóquio
com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a
relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e
recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma delas
era importante aos olhos d’Ele: «não se vendem cinco
pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles
passa despercebido diante de Deus» (Lc. 12, 6). «Olhai as
aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em
celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as» (Mt. 6, 26).
97. O Senhor podia convidar os outros a estar atentos à
beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em
contacto permanente com a natureza e prestava-lhe uma
atenção cheia de carinho e admiração. Quando percorria os
quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a
beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a
individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: «Levantai
os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa»
(Jo 4, 35). «O Reino dos Céus é semelhante a um grão de
mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a
menor de todas as sementes; mas, depois de crescer,
torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa
árvore» (Mt. 13, 31-32).
98. Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com
grande maravilha dos outros: «quem é este, a quem até o
vento e o mar obedecem»? (Mt. 8, 27). Não Se apresentava
como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas
aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo, declarou: «Veio o
Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um
glutão e bebedor de vinho”» (Mt. 11, 19). Encontrava-Se
longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e
as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história,
estes dualismos combalidos tiveram notável influência
nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho.
Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em
contacto com matéria criada por Deus para a moldar com a
sua capacidade de artesão. É digno de nota que a maior
parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a
esta tarefa, levando uma vida simples que não despertava
maravilha alguma: «não é Ele o carpinteiro, o filho de
Maria»? (Mc. 6, 3). Assim santificou o trabalho,
atribuindo-lhe um valor peculiar para o nosso
amadurecimento. São João Paulo II ensinava que,
«suportando o que há de penoso no trabalho em união com
Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de alguma
forma, com o Filho de Deus na redenção da humanidade».[79]
99. Segundo a compreensão cristã da realidade, o destino
da criação inteira passa pelo mistério de Cristo, que nela
está presente desde a origem: «Todas as coisas foram
criadas por Ele e para Ele» (Cl. 1, 16).[80] O prólogo do
Evangelho de João (1, 1-18) mostra a atividade criadora de
Cristo como Palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo
surpreende ao afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo.
1, 14). Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no
universo criado, partilhando a própria sorte com ele até à
cruz. Desde o início do mundo, mas de modo peculiar a
partir da encarnação, o mistério de Cristo opera
veladamente no conjunto da realidade natural, sem com isso
afetar a sua autonomia.
100. O Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e
da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo;
mostra-o também como ressuscitado e glorioso, presente em
toda a criação com o seu domínio universal. «Foi n’Ele que
aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e, por Ele e
para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto as que
estão na terra como as que estão no céu» (Cl. 1, 19-20).
Isto lança-nos para o fim dos tempos, quando o Filho
entregar ao Pai todas as coisas «a fim de que Deus seja
tudo em todos» (1a Cor. 15, 28). Assim, as criaturas deste
mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente
natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente
e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do
campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus
olhos humanos, agora estão cheias da sua presença
luminosa. |
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parte 3 |
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O Terço
(Rosário) dos Homens não exige
nada e não cobra nada da vida pessoal dos seus
participantes, o que faz
com que seus membros se sintam livres, e a liberdade dá ao
homem o poder de ser aquilo que ele deseja ser, daí as
transformações se sucederem de modo espontâneo
causado pelo contato que os mesmos passam a ter
com
Deus por intercessão
de Maria. |
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