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78 ANOS DE GRAÇAS E
BÊNÇÃOS
no Brasil e no mundo
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CAPÍTULO III
A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA
101. Para nada serviria descrever os sintomas, se não
reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um
modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser
humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a
arruinar. Não poderemos deter-nos a pensar nisto mesmo?
Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma
tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser
humano e a sua ação no mundo.
1. A tecnologia: criatividade e poder
102. A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da
tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos
herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a
máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a eletricidade,
o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina
moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução
digital, a robótica, as biotecnologias e as
nanotecnologias. É justo que nos alegremos com estes
progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas
possibilidades que nos abrem estas novidades incessantes,
porque «a ciência e a tecnologia são um produto estupendo
da criatividade humana que Deus nos deu».[81] A
transformação da natureza para fins úteis é uma
característica do gênero humano, desde os seus primórdios;
e assim a técnica «exprime a tensão do ânimo humano para
uma gradual superação de certos condicionamentos
materiais».[82] A tecnologia deu remédio a inúmeros males,
que afligiam e limitavam o ser humano. Não podemos deixar
de apreciar e agradecer os progressos alcançados
especialmente na medicina, engenharia e comunicações. Como
não havemos de reconhecer todos os esforços de tantos
cientistas e técnicos que elaboraram alternativas para um
desenvolvimento sustentável?
103. A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas
realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do
ser humano, desde os objetos de uso doméstico até aos
grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços
públicos. É capaz também de produzir coisas belas e fazer
o ser humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para
o âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião
ou de alguns arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais
de valor, obtidas com o recurso aos novos instrumentos
técnicos. Assim, no desejo de beleza do artífice e em quem
contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa
plenitude propriamente humana.
104. Não podemos, porém, ignorar que a energia nuclear, a
biotecnologia, a informática, o conhecimento do nosso
próprio DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos
dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o
conhecimento e sobretudo o poder econômico para o
desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do
gênero humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve
tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará
bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a
fazer. Basta lembrar as bombas atômicas lançadas em pleno
século XX, bem como a grande exibição de tecnologia
ostentada pelo nazismo, o comunismo e outros regimes
totalitários e que serviu para o extermínio de milhões de
pessoas, sem esquecer que hoje a guerra dispõe de
instrumentos cada vez mais mortíferos. Nas mãos de quem
está e pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente
arriscado que resida numa pequena parte da humanidade.
105. Tende-se a crer que «toda a aquisição de poder seja
simplesmente progresso, aumento de segurança, de
utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de
valores»[83], como se a realidade, o bem e a verdade
desabrochassem espontaneamente do próprio poder da
tecnologia e da economia. A verdade é que «o homem moderno
não foi educado para o reto uso do poder»,[84] porque o
imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um
desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade,
aos valores, à consciência. Cada época tende a desenvolver
uma reduzida autoconsciência dos próprios limites. Por
isso, é possível que hoje a humanidade não se dê conta da
seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e «cresce
continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do
seu poder» quando «não existem normas de liberdade, mas
apenas pretensas necessidades de utilidade e
segurança».[85] O ser humano não é plenamente autônomo. A
sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do
inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da
violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto
frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem
ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de
mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de
uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que
lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum
lúcido domínio de si.
2. A globalização do paradigma tecnocrático
106. Mas o problema fundamental é outro e ainda mais
profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a
tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um
paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma,
sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente,
no processo lógico-racional, compreende e assim se
apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito
desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua
experimentação, que já é explicitamente uma técnica de
posse, domínio e transformação. É como se o sujeito
tivesse à sua frente a realidade informe totalmente
disponível para a manipulação. Sempre se verificou a
intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante
muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar
as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas;
tratava-se de receber o que a realidade natural por si
permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que
interessa é extrair o máximo possível das coisas por
imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a
realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser
humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão,
tornando-se contundentes. Daqui passa-se facilmente à
ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto
entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da
tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade
infinita dos bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até
ao limite e para além do mesmo. Trata-se do falso
pressuposto de que «existe uma quantidade ilimitada de
energia e de recursos a serem utilizados, que a sua
regeneração é possível de imediato e que os efeitos
negativos das manipulações da ordem natural podem ser
facilmente absorvidos».[86]
107. Assim podemos afirmar que, na origem de muitas
dificuldades do mundo atual, está principalmente a
tendência, nem sempre consciente, de elaborar a
metodologia e os objetivos da tecnociência segundo um
paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas
e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação
deste modelo a toda a realidade, humana e social,
constatam-se na degradação do meio ambiente, mas isto é
apenas um sinal do reducionismo que afeta a vida humana e
a sociedade em todas as suas dimensões. É preciso
reconhecer que os produtos da técnica não são neutros,
porque criam uma trama que acaba por condicionar os
estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na
linha dos interesses de determinados grupos de poder.
Certas opções, que parecem puramente instrumentais, na
realidade são opções sobre o tipo de vida social que se
pretende desenvolver.
108. Não se consegue pensar que seja possível sustentar
outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero
instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático
tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos
seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus
recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se
anticultural a escolha dum estilo de vida, cujos objetivos
possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica,
dos seus custos e do seu poder globalizante e
massificador. Com efeito, a técnica tem tendência a fazer
com que nada fique fora da sua lógica férrea, e «o homem
que é o seu protagonista sabe que, em última análise, não
se trata de utilidade nem de bem-estar, mas de domínio;
domínio no sentido extremo da palavra».[87] Por isso,
«procura controlar os elementos da natureza e,
conjuntamente, os da existência humana».[88] Reduzem-se
assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e
o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos.
109. O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu
domínio também sobre a economia e a política. A economia
assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do
lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências
negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia
real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial
e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento
ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a economia
atual e a tecnologia resolverão todos os problemas
ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens
não acadêmicas, que os problemas da fome e da miséria no
mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do
mercado. Não é uma questão de teorias econômicas, que hoje
talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua
instalação no desenvolvimento concreto da economia.
Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os
fatos, quando parece não preocupar-se com o justo nível da
produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado
responsável do meio ambiente ou os direitos das gerações
futuras. Com os seus comportamentos, afirmam que é
suficiente o objetivo da maximização dos ganhos. Mas o
mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento
humano integral nem a inclusão social.[89] Entretanto
temos um «superdesenvolvimento dissipador e consumista que
contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações
de miséria desumanizadora»,[90] mas não se criam, de forma
suficientemente rápida, instituições econômicas e
programas sociais que permitam aos mais pobres terem
regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos
suficiente consciência de quais sejam as raízes mais
profundas dos desequilíbrios atuais: estes têm a ver com a
orientação, os fins, o sentido e o contexto social do
crescimento tecnológico e econômico.
110. A especialização própria da tecnologia comporta
grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto.
A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de
se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a
perder o sentido da totalidade, das relações que existem
entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se
torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos
adequados para resolver os problemas mais complexos do
mundo atual, sobretudo os do meio ambiente e dos pobres,
que não se podem enfrentar a partir duma única perspectiva
nem dum único tipo de interesses. Uma ciência, que
pretenda oferecer soluções para os grandes problemas,
deveria necessariamente ter em conta tudo o que o
conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a
filosofia e a ética social. Mas este é atualmente um
procedimento difícil de seguir. Por isso também não se
consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de
referência. A vida passa a ser uma rendição às
circunstâncias condicionadas pela técnica, entendida como
o recurso principal para interpretar a existência. Na
realidade concreta que nos interpela, aparecem vários
sintomas que mostram o erro, tais como a degradação
ambiental, a ansiedade, a perda do sentido da vida e da
convivência social. Assim se demonstra uma vez mais que «a
realidade é superior à ideia».[91]
111. A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série
de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão
surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento
das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar
diferente, um pensamento, uma política, um programa
educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que
oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático.
Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas
podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada.
Buscar apenas um remédio técnico para cada problema
ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade,
estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e
mais profundos do sistema mundial.
112. Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a
liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la
e colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso, mais
saudável, mais humano, mais social, mais integral. De fato
verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático
nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de
pequenos produtores optam por sistemas de produção menos
poluentes, defendendo um modelo não consumista de vida,
alegria e convivência. Ou quando a técnica tem em vista
prioritariamente resolver os problemas concretos dos
outros, com o compromisso de os ajudar a viver com mais
dignidade e menor sofrimento. E ainda quando a busca
criadora do belo e a sua contemplação conseguem superar o
poder objetivador numa espécie de salvação que acontece na
beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade
autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar
no meio da civilização tecnológica de forma quase
imperceptível, como a neblina que filtra por baixo da
porta fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de
tudo, desabrocha como uma obstinada resistência daquilo
que é autêntico?
113. Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num
futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a
partir das condições atuais do mundo e das capacidades
técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência
e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da
história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para
um futuro feliz são outros. Apesar disso, também não se
imaginam renunciando às possibilidades que oferece a
tecnologia. A humanidade mudou profundamente, e o
avolumar-se de constantes novidades consagra uma
fugacidade que nos arrasta à superfície numa única
direção. Torna-se difícil parar para recuperarmos a
profundidade da vida. Se a arquitetura reflete o espírito
duma época, as mega estruturas e as casas em série
expressam o espírito da técnica globalizada, onde a
permanente novidade dos produtos se une a um tédio
enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a
perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso
contrário, apenas legitimaremos o estado de fato e
precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio.
114. O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de
avançar numa corajosa revolução cultural. A ciência e a
tecnologia não são neutrais, mas podem, desde o início até
ao fim dum processo, envolver diferentes intenções e
possibilidades que se podem configurar de várias maneiras.
Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é
indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade
doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis
e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes
objetivos arrasados por um desenfreamento megalômano.
3. Crise do antropocentrismo moderno e suas consequências
115. O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente,
por colocar a razão técnica acima da realidade, porque
este ser humano «já não sente a natureza como norma válida
nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese,
vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar
uma obra em que se imerge completamente, sem se importar
com o que possa suceder a ela».[92] Assim debilita-se o
valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não
redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si
mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade.
«Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve
usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a
qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por
Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e
moral de que foi dotado».[93]
116. Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso
antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a
minar toda a referência a algo de comum e qualquer
tentativa de reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a
hora de prestar novamente atenção à realidade com os
limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a
possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais
saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da
antropologia cristã acabou por promover uma concepção
errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes
foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o
mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da
natureza fosse atividade de fracos. Mas a interpretação
correta do conceito de ser humano como senhor do universo
é entendê-lo no sentido de administrador responsável.[94]
117. A falta de preocupação por medir os danos à natureza
e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo
evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a
natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas.
Quando, na própria realidade, não se reconhece a
importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com
deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente
se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está
interligado. Se o ser humano se declara autônomo da
realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se
a própria base da sua existência, porque «em vez de
realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da
criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba
por provocar a revolta da natureza».[95]
118. Esta situação leva-nos a uma esquizofrenia
permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que
não reconhece aos outros seres um valor próprio, até à
reação de negar qualquer valor peculiar ao ser humano.
Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não haverá
uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo.
Não há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a
pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre
outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo
físico, «corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a
noção da responsabilidade».[96] Um antropocentrismo
desordenado não deve necessariamente ser substituído por
um «biocentrismo», porque isto implicaria introduzir um
novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas
existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do
ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo
tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares
capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e
responsabilidade.
119. A crítica do antropocentrismo desordenado não deveria
deixar em segundo plano também o valor das relações entre
as pessoas. Se a crise ecológica é uma expressão ou uma
manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual
da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa
relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas
as relações humanas fundamentais. Quando o pensamento
cristão reivindica, para o ser humano, um valor peculiar
acima das outras criaturas, suscita a valorização de cada
pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento do
outro. A abertura a um «tu» capaz de conhecer, amar e
dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana.
Por isso, para uma relação adequada com o mundo criado,
não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano
nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao «Tu»
divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o
ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e
com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de
beleza ecológica e um confinamento asfixiante na
imanência.
120. Uma vez que tudo está relacionado, também não é
compatível a defesa da natureza com a justificação do
aborto. Não parece viável um percurso educativo para
acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes,
são molestos e inoportunos, quando não se dá proteção a um
embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de
incômodos e dificuldades: «Se se perde a sensibilidade
pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham
também outras formas de acolhimento úteis à vida
social».[97]
121. Espera-se ainda o desenvolvimento duma nova síntese,
que ultrapasse as falsas dialéticas dos últimos séculos. O
próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e
ao tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não
cessa de se repensar e reformular em diálogo com as novas
situações históricas, deixando desabrochar assim a sua
eterna novidade.[98]
O relativismo prático
122. Um antropocentrismo desordenado gera um estilo de
vida desordenado. Na exortação apostólica Evangelii
gaudium, referi-me ao relativismo prático que caracteriza
a nossa época e que é «ainda mais perigoso que o
doutrinal».[99] Quando o ser humano se coloca no centro,
acaba por dar prioridade absoluta aos seus interesses
contingentes, e tudo o mais se torna relativo. Por isso,
não deveria surpreender que, juntamente com a omnipresença
do paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem
limites, se desenvolva nos indivíduos este relativismo no
qual tudo o que não serve os próprios interesses imediatos
se torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que permite
compreender como se alimentam mutuamente diferentes
atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação
ambiental e a degradação social.
123. A cultura do relativismo é a mesma patologia que
impele uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la
como mero objeto, obrigando-a a trabalhos forçados, ou
reduzindo-a à escravidão por causa duma dívida. É a mesma
lógica que leva à exploração sexual das crianças, ou ao
abandono dos idosos que não servem os interesses próprios.
É também a lógica interna daqueles que dizem: «Deixemos
que as forças invisíveis do mercado regulem a economia,
porque os seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são
danos inevitáveis». Se não há verdades objetivas nem
princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações
próprias e das necessidades imediatas, que limites pode
haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade
organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes
ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção?
Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra
de órgãos dos pobres com a finalidade de os vender ou
utilizar para experimentação, ou o descarte de crianças
porque não correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma
lógica do «usa e joga fora» que produz tantos resíduos, só
pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente
se tem necessidade. Portanto, não podemos pensar que os
programas políticos ou a força da lei sejam suficientes
para evitar os comportamentos que afetam o meio ambiente,
porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de
reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer
princípios universalmente válidos, as leis só se poderão
entender como imposições arbitrárias e obstáculos a
evitar.
A necessidade de defender o trabalho
124. Em qualquer abordagem de ecologia integral que não
exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor do
trabalho, tão sabiamente desenvolvido por São João Paulo
II na sua encíclica Laborem excercens. Recordemos que,
segundo a narração bíblica da criação, Deus colocou o ser
humano no jardim recém-criado (cf. Gn. 2, 15), não só para
cuidar do existente (guardar), mas também para trabalhar
nele a fim de que produzisse frutos (cultivar). Assim, os
operários e os artesãos «asseguram uma criação perpétua»
(Sir. 38, 34). Na realidade, a intervenção humana que
favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma
mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se
como instrumento de Deus para ajudar a fazer desabrochar
as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas: «O
Senhor produziu da terra os medicamentos; e o homem
sensato não os desprezará» (Sir. 38, 4).
125. Se procurarmos pensar quais possam ser as relações
adequadas do ser humano com o mundo que o rodeia, surge a
necessidade duma concepção correta do trabalho, porque,
falando da relação do ser humano com as coisas,
impõe-se-nos a questão relativa ao sentido e finalidade da
ação humana sobre a realidade. Não falamos apenas do
trabalho manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer
atividade que implique alguma transformação do existente,
desde a elaboração dum balanço social até ao projeto dum
progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho
pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano
pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo.
A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa
das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis,
desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do
trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do
Beato Carlos de Foucauld e seus discípulos.
126. Algo se pode recolher também da longa tradição
monástica. Nos primórdios, esta favorecia de certo modo a
fuga do mundo, procurando afastar-se da decadência urbana.
Por isso, os monges buscavam o deserto, convencidos de que
fosse o lugar adequado para reconhecer a presença de Deus.
Mais tarde, São Bento de Núrsia quis que os seus monges
vivessem em comunidade, unindo oração e estudo com o
trabalho manual («Ora et labora»). Esta introdução do
trabalho manual impregnada de sentido espiritual
revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o
amadurecimento e a santificação na compenetração entre o
recolhimento e o trabalho. Esta maneira de viver o
trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito
pelo meio ambiente, impregnando de sadia sobriedade a
nossa relação com o mundo.
127. Afirmamos que «o homem é o protagonista, o centro e o
fim de toda a vida econômico-social».[100] Apesar disso,
quando no ser humano se deteriora a capacidade de
contemplar e respeitar, criam-se as condições para se
desfigurar o sentido do trabalho.[101] Convém recordar
sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio, ser o
agente responsável do seu bem-estar material, progresso
moral e desenvolvimento espiritual».[102] O trabalho
deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento
pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a
criatividade, a projetação do futuro, o desenvolvimento
das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação
com os outros, uma atitude de adoração. Por isso, a
realidade social do mundo atual exige que, acima dos
limitados interesses das empresas e duma discutível
racionalidade econômica, «se continue a perseguir como
prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para
todos».[103]
128. Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não
se deve procurar que o progresso tecnológico substitua
cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a
humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma
necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é
caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização
pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro
deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar
emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre
consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a
orientação da economia favoreceu um tipo de progresso
tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de
produção com base na diminuição dos postos de trabalho,
que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de
como a ação do homem se pode voltar contra si mesmo. A
diminuição dos postos de trabalho «tem também um impacto
negativo no plano econômico com a progressiva corrosão do
“capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de
confiança, de credibilidade, de respeito das regras,
indispensável em qualquer convivência civil».[104] Em
suma, «os custos humanos são sempre também custos
econômicos, e as disfunções econômicas acarretam sempre
também custos humanos».[105] Renunciar a investir nas
pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo
negócio para a sociedade.
129. Para se conseguir continuar a dar emprego, é
indispensável promover uma economia que favoreça a
diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por
exemplo, há uma grande variedade de sistemas alimentares
rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior
parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida
de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em
pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça e
recolha de produtos silvestres, quer na pesca artesanal.
As economias de larga escala, especialmente no sector
agrícola, acabam por forçar os pequenos agricultores a
vender as suas terras ou a abandonar as suas culturas
tradicionais. As tentativas feitas por alguns deles no
sentido de desenvolverem outras formas de produção, mais
diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade
de ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque
a infraestrutura de venda e transporte está ao serviço das
grandes empresas. As autoridades têm o direito e a
responsabilidade de adotar medidas de apoio claro e firme
aos pequenos produtores e à diversificação da produção. Às
vezes, para que haja uma liberdade econômica da qual todos
realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites
àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A
simples proclamação da liberdade econômica, enquanto as
condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter
acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o acesso ao
trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a
política. A atividade empresarial, que é uma nobre vocação
orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para
todos, pode ser uma maneira muito fecunda de promover a
região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se
pensa que a criação de postos de trabalho é parte
imprescindível do seu serviço ao bem comum.
A inovação biológica a partir da pesquisa
130. Na visão filosófica e teológica do ser humano e da
criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa
humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua
sabedoria, não é um fator externo que deva ser totalmente
excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir
no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é
necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as
experimentações sobre os animais só são legítimas «desde
que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam
para curar ou poupar vidas humanas».[106] Recorda, com
firmeza, que o poder humano tem limites e que «é contrário
à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e
dispor indiscriminadamente das suas vidas».[107] Todo o
uso e experimentação «exige um respeito religioso pela
integridade da criação».[108]
131. Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João
Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos
científicos e tecnológicos, que «manifestam quanto é nobre
a vocação do homem para participar de modo responsável na
ação criadora de Deus», mas ao mesmo tempo recordava que
«toda e qualquer intervenção numa área determinada do
ecossistema não pode prescindir da consideração das suas
consequências noutras áreas».[109] Afirmava que a Igreja
aprecia a contribuição «do estudo e das aplicações da
biologia molecular, completada por outras disciplinas como
a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e
na indústria»,[110] embora dissesse também que isto não
deve levar a uma «indiscriminada manipulação
genética»[111] que ignore os efeitos negativos destas
intervenções. Não é possível frear a criatividade humana.
Se não se pode proibir a um artista que exprima a sua
capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem
possui dons especiais para o progresso científico e
tecnológico, cujas capacidades foram dadas por Deus para o
serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de
considerar os objetivos, os efeitos, o contexto e os
limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de
poder com grandes riscos.
132. Neste quadro, deveria situar-se toda e qualquer
reflexão acerca da intervenção humana sobre o mundo
vegetal e animal que implique hoje mutações genéticas
geradas pela biotecnologia, a fim de aproveitar as
possibilidades presentes na realidade material. O respeito
da fé pela razão pede para se prestar atenção àquilo que a
própria ciência biológica, desenvolvida independentemente
dos interesses econômicos, possa ensinar a propósito das
estruturas biológicas e das suas possibilidades e
mutações. Em todo o caso, é legítima uma intervenção que
atue sobre a natureza «para a ajudar a desenvolver-se na
sua própria linha, a da criação, querida por Deus».[112]
133. É difícil emitir um juízo geral sobre o
desenvolvimento de organismos modificados geneticamente (OMG),
vegetais ou animais, para fins medicinais ou
agropecuários, porque podem ser muito diferentes entre si
e requerer distintas considerações. Além disso, os riscos
nem sempre se devem atribuir à própria técnica, mas à sua
aplicação inadequada ou excessiva. Na realidade, muitas
vezes as mutações genéticas foram e continuam a ser
produzidas pela própria natureza. E mesmo as provocadas
pelo ser humano não são um fenômeno moderno. A
domesticação de animais, o cruzamento de espécies e outras
práticas antigas e universalmente seguidas podem
incluir-se nestas considerações. É oportuno recordar que o
início dos progressos científicos sobre cereais
transgênicos foi a observação de bactérias que, de forma
natural e espontânea, produziam uma modificação no genoma
dum vegetal. Mas, na natureza, estes processos têm um
ritmo lento, que não se compara com a velocidade imposta
pelos avanços tecnológicos atuais, mesmo quando estes
avanços se baseiam num desenvolvimento científico de
vários séculos.
134. Embora não disponhamos de provas definitivas acerca
do dano que poderiam causar os cereais transgênicos aos
seres humanos e apesar de, nalgumas regiões, a sua
utilização ter produzido um crescimento econômico que
contribuiu para resolver determinados problemas, há
dificuldades importantes que não devem ser minimizadas. Em
muitos lugares, na sequência da introdução destas
culturas, constata-se uma concentração de terras
produtivas nas mãos de poucos, devido ao «progressivo
desaparecimento de pequenos produtores, que, em
consequência da perda das terras cultivadas, se viram
obrigados a retirar-se da produção direta».[113] Os mais
frágeis deles tornam-se trabalhadores precários, e muitos
assalariados agrícolas acabam por emigrar para miseráveis
aglomerados das cidades. A expansão destas culturas
destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a
diversidade na produção e afeta o presente ou o futuro das
economias regionais. Em vários países, nota-se uma
tendência para o desenvolvimento de oligopólios na
produção de sementes e outros produtos necessários para o
cultivo, e a dependência agrava-se quando se pensa na
produção de sementes estéreis que acabam por obrigar os
agricultores a comprá-las às empresas produtoras.
135. Sem dúvida, há necessidade duma atenção constante,
que tenha em consideração todos os aspectos éticos
implicados. Para isso, é preciso assegurar um debate
científico e social que seja responsável e amplo, capaz de
considerar toda a informação disponível e chamar as coisas
pelo seu nome. Às vezes não se coloca sobre a mesa a
informação completa, mas é selecionada de acordo com os
próprios interesses, sejam eles políticos, econômicos ou
ideológicos. Isto torna difícil elaborar um juízo
equilibrado e prudente sobre as várias questões, tendo
presente todas as variáveis em jogo. É necessário dispor
de espaços de debate, onde todos aqueles que poderiam de
algum modo ver-se, direta ou indiretamente, afetados
(agricultores, consumidores, autoridades, cientistas,
produtores de sementes, populações vizinhas dos campos
tratados e outros) tenham possibilidade de expor as suas
problemáticas ou ter acesso a uma informação ampla e
fidedigna para adotar decisões tendentes ao bem comum
presente e futuro. A questão dos OMG é uma questão de
caráter complexo, que requer ser abordada com um olhar
abrangente de todos os aspectos; isto exigiria pelo menos
um maior esforço para financiar distintas linhas de
pesquisa autônoma e interdisciplinar que possam trazer
nova luz.
136. Além disso, é preocupante constatar que alguns
movimentos ecologistas defendem a integridade do meio
ambiente e, com razão, reclamam a imposição de
determinados limites à pesquisa científica, mas não
aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas
vezes justifica-se que se ultrapassem todos os limites,
quando se faz experiências com embriões humanos vivos.
Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é
independente do seu grau de desenvolvimento. Aliás, quando
a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por
considerar legítima qualquer prática. Como vimos neste
capítulo, a técnica separada da ética dificilmente será
capaz de autolimitar o seu poder. |
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parte 4 |
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O Terço
(Rosário) dos Homens não exige
nada e não cobra nada da vida pessoal dos seus
participantes, o que faz
com que seus membros se sintam livres, e a liberdade dá ao
homem o poder de ser aquilo que ele deseja ser, daí as
transformações se sucederem de modo espontâneo
causado pelo contato que os mesmos passam a ter
com
Deus por intercessão
de Maria. |
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