ARTIGO 8
O OITAVO MANDAMENTO
«Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo»
(Ex. 20, 16).
«Foi dito aos antigos: "não faltarás ao que tiveres
jurado; hás de cumprir os teus juramentos para com o
Senhor"»
(M.t 5, 33).
2464. O oitavo mandamento proíbe falsificar a
verdade nas relações com outrem. Esta prescrição moral
decorre da vocação do povo santo para ser testemunha do
seu Deus, que é e que quer a verdade. As ofensas à
verdade exprimem, por palavras ou por atos, a recusa em
empenhar-se na retidão moral: são infidelidades graves
para com Deus e, nesse sentido, minam os alicerces da
Aliança.
I. Viver na verdade
2465. O Antigo Testamento declara: Deus é a fonte de
toda a verdade. A sua Palavra é verdade
(Cf. Pr. 8, 7, 2 Sm. 7, 28).
A sua lei é verdade
(Sl. 119, 142).
«A sua fidelidade permanece de geração em geração»
(Sl. 119, 90)
(Cf. Lc. 1, 50).
Uma vez que Deus é o «Verdadeiro» (Rm. 3, 4), os
membros do seu povo são chamados a viver na verdade
(Cf. Sl. 119, 30).
2466. Em Jesus Cristo, a verdade de Deus manifestou-se
na sua totalidade. Cheio de graça e de verdade
(Cf. Jo. 1, 14),
Ele é a «luz do mundo» (Jo. 8, 12), Ele
é a verdade
(Cf. Jo. 14, 6).
Quem nele crê não fica nas trevas
(Cf. Jo. 12, 46).
O discípulo de Jesus «permanece na sua palavra»
para conhecer a verdade que liberta
(Cf Jo. 8, 31-32)
e que santifica
(Cf. Jo. 17, 17).
Seguir Jesus é viver do Espírito de verdade
(Cf. Jo. 14, 17)
que o Pai envia em seu nome
(Cf. Jo. 14, 26) e que conduz «à verdade total» (Jo.
14, 17; 16, 13). Aos seus discípulos, Jesus ensina o
amor incondicional à verdade: «que a vossa linguagem
seja: "sim, sim; não, não"» (Mt. 5, 37).
2467. O homem tende naturalmente para a verdade. É
obrigado a honrá-la e a testemunhá-la: «em virtude da
sua dignidade, todos os homens, porque pessoas, [...]
são impelidos pela sua própria natureza e obrigados por
exigência moral a procurar a verdade, em primeiro lugar
aquela que diz respeito à religião. São obrigados também
a aderir à verdade desde que a conheçam e a regular toda
a sua vida segundo as exigências da verdade»
(II Concílio do Vaticano, Decl. Dignitatis humanae,
2: AAS 58 (1966) 931).
2468. A verdade, como retidão da ação e da palavra
humana, chama-se veracidade, sinceridade ou
franqueza. A verdade ou veracidade é a virtude que
consiste em mostrar-se verdadeiro nos atos e em dizer a
verdade nas palavras, evitando a duplicidade, a
simulação e a hipocrisia.
2469. «Os homens não seriam capazes de viver juntos,
se não tivessem confiança uns nos outros, isto é, se não
se dissessem a verdade»
(São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 2-2, q.
109, a. 3, ad 1: Ed. Leon. 9, 418).
A virtude da veracidade dá justamente a outrem o que lhe
é devido. A veracidade observa um justo meio-termo entre
o que deve ser dito e o segredo que deve ser guardado:
implica honestidade e discrição. Por justiça, «um
homem deve honestamente ao outro a manifestação da
verdade»
(São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 2-2, q.
109, a. 3, c: Ed. Leon. 9. 418).
2470. O discípulo de Cristo aceita «viver na verdade»,
isto é, na simplicidade duma vida conforme ao exemplo do
Senhor e permanecendo na Sua verdade. «Se dizemos que
estamos em comunhão com Ele e andamos nas trevas,
mentimos, não praticamos a verdade» (1ª Jo. 1, 6).
II. «Dar testemunho da verdade»
2471. Diante de Pilatos, Cristo proclama que
«veio ao mundo para dar testemunho da verdade»
(Cf. Jo. 18, 37). O cristão não deve «envergonhar-se de
dar testemunho do Senhor» (2ª Tm. 1, 8). Em
situações que exigem a confissão da fé, o cristão deve
professá-la sem equívoco, conforme o exemplo de São
Paulo diante dos seus juízes. É preciso guardar uma
consciência irrepreensível diante de Deus e dos homens»
(At. 24, 16).
2472. O dever dos cristãos, de tomar parte na vida da
Igreja, leva-os a agir como testemunhas do Evangelho
e das obrigações que dele dimanam. Este testemunho é
transmissão da fé por palavras e obras. O testemunho é
um ato de justiça que estabelece ou que dá a conhecer a
verdade
(Cf. Mt. 18, 16): «Todos os fiéis cristãos, onde quer
que vivam, têm obrigação de manifestar, pelo exemplo da
vida e pelo testemunho da palavra, o homem novo de que
se revestiram pelo Batismo e a virtude do Espírito
Santo, com que foram robustecidos na Confirmação»
(II Concílio do Vaticano, Decr. Ad gentes, 11:
AAS 58 (1966) 959).
2473. O martírio é o supremo testemunho dado em
favor da verdade da fé; designa um testemunho que vai
até à morte. O mártir dá testemunho de Cristo, morto e
ressuscitado, ao qual está unido pela caridade. Dá
testemunho da verdade da fé e da doutrina cristã.
Suporta a morte com um ato de fortaleza. «Deixai-me
ser pasto das feras, pelas quais poderei chegar à posse
de Deus»
(Santo Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos,
4, 1: SC 10bis, p. 110 (Funk, 1, 256)).
2474. A Igreja recolheu com o maior cuidado as memórias
daqueles que foram até ao fim na confissão da sua fé.
São as Atas dos Mártires, as quais constituem os
arquivos da verdade escritos com letras de sangue:
- «de nada me serviriam os atrativos do mundo ou os
reinos deste século. Prefiro morrer em Cristo Jesus a
reinar sobre todos os confins da terra. Procuro Aquele
que morreu por nós; quero aquele que ressuscitou por
nossa causa. Estou prestes a nascer...»
(Santo Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos,
6, 1: SC 10bis, p. 114 (Funk, 1, 258-260)).
«Eu Te bendigo por me teres julgado digno deste dia e
desta hora, digno de ser contado no número dos teus
mártires (...). Tu cumpriste a tua promessa, Deus da
fidelidade e da verdade. Por esta graça e por tudo, eu
Te louvo e Te bendigo; eu Te glorifico pelo eterno e
celeste Sumo-Sacerdote Jesus Cristo, Teu Filho
muito-amado. Por Ele, que está contigo e com o Espírito,
glória a Ti, agora e pelos séculos sem fim. Amém»
(Martyrium Polycarpi, 14, 2-3: SC 10bis, p. 228
(Funk 1, 330-332)).
III. As ofensas à verdade
2475. Os discípulos de Cristo «revestiram-se do homem
novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade
verdadeiras» (Ef. 4, 24). «Libertos da mentira»
(Ef. 4, 25), devem rejeitar «toda a malícia,
falsidade, hipocrisia, invejas e toda a espécie de
maledicência» (1ª Pe. 2, I).
2476. Falso testemunho e perjúrio. Uma afirmação
contrária à verdade feita publicamente, reveste-se de
gravidade particular: perante um tribunal, é um falso
testemunho
(Cf. Pr. 19, 9);
quando mantida sob juramento, é um perjúrio. Estes modos
de agir contribuem quer para condenar um inocente, quer
para absolver um culpado ou aumentar a pena em que tiver
incorrido o acusado
(Cf. Pr. 18, 5).
E comprometem gravemente o exercício da justiça e a
equidade da sentença pronunciada pelos juízes.
2477. O respeito pela reputação das pessoas
proíbe toda e qualquer atitude ou palavra suscetíveis de
lhes causar um dano injusto
(Cf. CIC can. 220).
Torna-se culpado:
- de juízo temerário, aquele que, mesmo
tacitamente, admite como verdadeiro, sem prova
suficiente, um defeito moral do próximo;
- de maledicência, aquele que, sem motivo
objetivamente válido, revela os defeitos e as faltas de
outrem a pessoas que os ignoram
(Cf. Sir. 21, 28);
- de calúnia, aquele que, por afirmações
contrárias à verdade, prejudica a reputação dos outros e
dá ocasião a falsos juízos a seu respeito.
2478. Para evitar o juízo temerário, cada um procurará
interpretar em sentido favorável, tanto quanto possível,
os pensamentos, as palavras e os atos do seu próximo:
- «todo o bom cristão deve estar mais pronto a
interpretar favoravelmente a opinião ou afirmação
obscura do próximo do que a condená-la. Se de modo
nenhum a pode aprovar, interrogue-se sobre como é que
ele a compreende: se ele pensa ou compreende menos
retamente, corrija-o com benevolência; e se isso não
basta, tentem-se todos os meios oportunos para que,
compreendendo-a bem, ele regresse do erro são e salvo»
(Santo Inácio de Loyola, Exercitia spiritualia,
22: MHSI 100, 164).
2479. A maledicência e a calúnia destroem a reputação
e a honra do próximo. Ora, a honra é o testemunho
social prestado à dignidade humana e todos gozam do
direito natural à honra do seu nome, à boa reputação e
ao respeito. Por isso, a maledicência e a calúnia lesam
as virtudes da justiça e da caridade.
2480. Deve condenar-se toda a palavra ou atitude que,
por lisonja, adulação ou complacência, estimula e
confirma outrem na malícia dos seus atos e na
perversidade da sua conduta. A adulação é uma falta
grave, se se tornar cúmplice de vícios ou de pecados
graves. Nem o desejo de prestar um serviço nem a amizade
justificam a duplicidade de linguagem. A adulação é um
pecado venial quando apenas se deseja ser agradável,
evitar um mal, valer a uma necessidade ou obter
vantagens legítimas.
2481. A jactância ou vanglória constitui um
pecado contra a verdade. O mesmo se diga da ironia
que visa depreciar alguém, caricaturando, de modo
malévolo, um ou outro aspecto do seu comportamento.
2482. «A mentira consiste em dizer o que é falso com
a intenção de enganar»
(Santo Agostinho, De mendacio, 4, 5: CSEL 41, 419
(PL 40, 491)).
O Senhor denuncia na mentira uma obra diabólica: «vós
tendes por pai o diabo, [...] nele não há verdade;
quando fala mentira, fala do que lhe é próprio, porque é
mentiroso e pai da mentira» (Jo. 8, 44).
2483. A mentira é a ofensa mais direta à verdade. Mentir
é falar ou agir contrariamente à verdade, para induzir
em erro. Lesando a relação do homem com a verdade e com
o próximo, a mentira ofende a relação fundamental do
homem e da sua palavra com o Senhor.
2484. A gravidade da mentira mede-se pela
natureza da verdade que ela deforma, atendendo às
circunstâncias, às intenções de quem a comete e aos
danos causados àqueles que são suas vítimas. Embora a
mentira, em si, não constitua mais que um pecado venial,
torna-se mortal quando lesa gravemente as virtudes da
justiça e da caridade.
2485. A mentira é, por sua
natureza, condenável. É uma profanação da palavra, a
qual tem por fim comunicar aos outros a verdade
conhecida. O propósito deliberado de induzir o próximo
em erro, por meio de afirmações contrárias à verdade
constitui uma falta contra justiça e contra a caridade.
A culpabilidade é maior quando a intenção de enganar
pode ter consequências funestas para aqueles que são
desviados da verdade.
2486. A mentira (porque é uma violação da virtude da
veracidade) é uma autêntica violência feita a outrem.
Este é atingido na sua capacidade de conhecer, a qual é
condição de todo o juízo e de toda a decisão. A mentira
contém em gérmen a divisão dos espíritos e todos os
males que a mesma suscita. É funesta para toda a
sociedade: destrói pela base a confiança entre os homens
e retalha o tecido das relações sociais.
2487. Qualquer falta cometida contra a justiça e contra
a verdade implica o dever da reparação, mesmo que
o seu autor tenha sido perdoado. Quando for impossível
reparar publicamente um mal, deve-se fazê-lo em segredo;
se aquele que foi lesado não pode ser indemnizado
diretamente, deve dar-se-lhe uma satisfação moral, em
nome da caridade. Este dever de reparação diz respeito
também às faltas cometidas contra a reputação alheia. A
reparação, moral e às vezes material, deve ser avaliada
segundo a medida do prejuízo causado e obriga em
consciência.
IV. O respeito pela verdade
2488. O direito à comunicação da verdade não é
absoluto. Cada um deve conformar a sua vida com o
preceito evangélico do amor fraterno, mas este requer,
em situações concretas, que avaliemos se convém ou não
revelar a verdade a quem a pede.
2489. É a caridade e o respeito pela verdade que devem
ditar a resposta a qualquer pedido de informação ou
de comunicação. O bem e a segurança de outrem, o
respeito pela vida privada e pelo bem comum, são razões
suficientes para calar o que não deve ser conhecido ou
para usar uma linguagem discreta. Muitas vezes, o dever
de evitar o escândalo impõe uma estrita discrição.
Ninguém é obrigado a revelar a verdade a quem não tem o
direito de a conhecer
(Cf. Sir. 27, 17; Pr. 25, 9-10).
2490. O sigilo do sacramento da Reconciliação é
sagrado e não pode ser revelado sob pretexto algum.
«O sigilo sacramental é inviolável; pelo que o confessor
não pode denunciar o penitente, nem por palavras nem por
qualquer outro modo, nem por causa alguma»
(CIC can. 983, § 1).
2491. Os segredos profissionais - conhecidos, por
exemplo, por políticos, militares, médicos, juristas -
ou as confidências feitas sob sigilo, devem ser
guardados, salvo em casos excepcionais em que a retenção
do segredo poderia causar a quem o confiou, a quem o
recebeu, ou a terceiros, danos muito graves e somente
evitáveis pela revelação da verdade. Mesmo que não
tenham sido confiadas sob sigilo, as informações
particulares prejudiciais a outrem não devem ser
divulgadas sem uma razão grave e proporcionada.
2492. Cada qual deve observar uma justa reserva a
propósito da vida privada das pessoas. Os responsáveis
pela comunicação devem guardar uma justa proporção entre
as exigências do bem comum e o respeito pelos direitos
particulares. A ingerência dos órgãos de informação na
vida privada das pessoas comprometidas numa atividade
política ou pública é condenável na medida em que atenta
contra a sua intimidade e a sua liberdade.
V. O uso dos meios de comunicação social
2493. Na sociedade moderna, os meios de comunicação
social desempenham um papel de grande relevo na
informação, na promoção cultural e na formação. Este
papel é cada vez maior, em virtude dos progressos
técnicos, do alcance e diversidade das notícias
transmitidas e da influência exercida sobre a opinião
pública.
2494. A informação mediática está ao serviço do bem
comum
(Cf. II Concílio do Vaticano, Decr. Inter mirifica,
11: AAS 56 (1964) 148-149).
A sociedade tem direito a uma informação fundada na
verdade, na liberdade, na justiça e na solidariedade.
- «O uso reto deste direito requer que a comunicação
seja, quanto ao objeto, sempre verídica, e quanto ao
respeito pelas exigências da justiça e da caridade,
completa; quanto ao modo, que seja honesta e
conveniente, quer dizer, que na obtenção e difusão das
notícias, observe absolutamente as leis morais, os
direitos e a dignidade do homem»
(II Concílio do Vaticano, Decr. Inter mirifica,
5: AAS 56 (1964) 147).
2495 «Também neste domínio é necessário que todos os
membros da sociedade cumpram os seus deveres de justiça
e de verdade. Devem utilizar os meios de comunicação
social no sentido de concorrer para a formação e difusão
de uma reta opinião pública»
(II Concílio do Vaticano, Decr. Inter mirifica,
8: AAS 56 (1964) 148).
A solidariedade é consequência duma comunicação
verdadeira e justa e da livre circulação das ideias que
favorecem o conhecimento e o respeito pelos outros.
2496. Os meios de comunicação social (em particular os
mass-média) podem gerar uma certa passividade nos
utentes, fazendo deles consumidores pouco cautelosos de
mensagens e espetáculos. Os utentes devem impor a si
próprios moderação e disciplina em relação aos
mass-média. Hão de formar-se uma consciência esclarecida
e reta, para resistir mais facilmente às influências
menos honestas.
2497. Pela própria natureza da sua profissão na
imprensa, os seus responsáveis têm a obrigação, na
difusão da informação, de servir a verdade sem ofender a
caridade. Esforçar-se-ão por respeitar, com igual
cuidado, a natureza dos fatos e os limites do juízo
crítico em relação às pessoas. Devem evitar ceder à
difamação.
2498. «Cabem às autoridades civis deveres
particulares em razão do bem comum. [...] Os poderes
públicos devem defender e proteger a verdadeira e justa
liberdade de informação»
(II Concílio do Vaticano, Decr. Inter mirifica,
12: AAS 56 (1964) 149).
Promulgando leis e velando pela sua aplicação, os
poderes públicos «responsabilizar-se-ão por que o mau
uso das mídias não venha a causar graves prejuízos aos
costumes públicos e aos progressos da sociedade»
(II Concílio do Vaticano, Decr. Inter mirifica,
12: AAS 56 (1964) 149).
Sancionarão a violação dos direitos de cada um ao bom
nome e à privacidade; prestarão a tempo e honestamente
as informações que dizem respeito ao bem geral ou
correspondem a justas preocupações da população. Nada
pode justificar o recurso às falsas informações para
manipular a opinião pública através das mídias. Essas
intervenções não deverão atentar contra a liberdade dos
indivíduos e dos grupos.
2499. A moral denuncia a chaga dos estados totalitários,
que falsificam sistematicamente a verdade, exercem
através das «midias» o domínio político da
opinião, «manipulam» os acusados e as testemunhas
dos processos públicos e pensam assegurar a sua tirania
sufocando e reprimindo tudo o que consideram como
«delitos de opinião».
VI. Verdade, beleza e arte sacra
2500. A prática do bem é acompanhada por um prazer
espiritual gratuito e pela beleza moral. Do mesmo modo,
a verdade comporta a alegria e o esplendor da beleza
espiritual. A verdade é bela por si mesma. A verdade da
palavra, expressão racional do conhecimento da realidade
criada e incriada, é necessária ao homem dotado de
inteligência; mas a verdade pode encontrar também outras
formas de expressão humana, complementares, sobretudo
quando se trata de evocar o que ela comporta de
indizível: as profundezas do coração humano, as
elevações da alma, o mistério de Deus. Antes mesmo de Se
revelar ao homem em palavras de verdade, Deus
revela-se-lhe pela linguagem universal da criação, obra
da sua Palavra e da sua Sabedoria: a ordem e a harmonia
do cosmos - que podem ser descobertas tanto pela
criança como pelo homem de ciência - , «a grandeza e
a beleza das criaturas levam, por analogia, à
contemplação do seu Autor» (Sb. 13, 5), «porque
foi a própria fonte da beleza que as criou» (Sb.
13, 3).
- «Com efeito, a Sabedoria é um sopro do poder de Deus,
efusão pura da glória do Onipotente; por isso, nenhum
elemento impuro a pode atingir. Ela é o esplendor da luz
eterna, límpido espelho da atividade de Deus, imagem da
sua bondade»
(Sb. 7, 25-26). «A Sabedoria é, de fato, mais
formosa do que o sol e supera todas as constelações.
Comparada com a luz, revela-se mais excelente, porque à
luz sucede a noite, mas a maldade nada pode contra a
Sabedoria (Sb. 7, 29-30). Amei-a
[...]
e enamorei-me dos seus encantos»
(Sb. 8, 2)
2501. «Criado à imagem de Deus»
(Cf. Gn. 1, 26),
o homem exprime também a verdade da sua relação com Deus
Criador pela beleza das suas obras artísticas. A arte
é, com efeito, uma forma de expressão
especificamente humana. Para além da busca da satisfação
das necessidades vitais, comum a todas as criaturas
vivas, a arte é uma superabundância gratuita da riqueza
interior do ser humano. Fruto do talento dado pelo
Criador e do esforço do próprio homem, a arte é uma
forma de sabedoria prática, unindo conhecimento e
habilidade
(Cf. Sb. 7, 17)
para dar forma à verdade duma realidade, em linguagem
acessível à vista ou ao ouvido. A arte comporta assim
uma certa semelhança com a atividade de Deus no mundo
criado, na medida em que se inspira na verdade e no amor
dos seres. Como qualquer outra atividade humana, a arte
não tem em si mesma o seu fim absoluto; mas é ordenada e
enobrecida pelo fim último do homem
(Cf. Pio XII, Mensagem radiofónica (24 de
Dezembro de 1955): AAS 48 (1956) 26-41; Id., Mensagem
radiofónica aos membros das associações de jovens
operários cristãos (J.O.C.) (3 de Setembro de
1950): AAS 42 (1950) 639-642).
2502. A arte sacra é verdadeira e bela quando
corresponde, pela forma, à sua vocação própria: evocar e
glorificar, na fé e na adoração, o mistério
transcendente de Deus, sobre eminente beleza invisível
da verdade e do amor, manifestada em Cristo,
«esplendor da sua glória e imagem da sua substância»
(Heb. 1, 3), no Qual «habita corporalmente
toda a plenitude da divindade» (Cl. 2, 9); beleza
espiritual refletida na santíssima Virgem Mãe de Deus,
nos anjos e nos santos. A verdadeira arte sacra leva o
homem à adoração, à oração e ao amor de Deus, Criador e
Salvador, Santo e Santificador.
2503. Por isso, os Bispos devem, por si próprios ou por
delegados, velar pela promoção da arte sacra, antiga e
nova, sob todas as suas formas e, com o mesmo religioso
cuidado, afastar da liturgia e dos lugares de culto tudo
o que não for conforme com a verdade da fé e a autêntica
beleza da arte sacra
(Cf.
II Concílio do Vaticano, Const. Sacrosanctum
Concilium, 122-127: AAS 56 (1964) 130-132)
Resumindo:
2504. «Não levantarás falso testemunho contra o teu
próximo» (Ex 20, 16). Os discípulos de Cristo
revestiram-se «do homem novo, que foi criado em
conformidade com Deus, na justiça e na santidade,
próprias da verdade» (Ef 4, 24).
2505. A verdade ou veracidade é a virtude que
consiste em mostrar-se verdadeiro nos atos e em dizer a
verdade nas palavras, evitando a duplicidade, a
simulação e a hipocrisia.
2506. O cristão não deve «envergonhar-se de dar
testemunho do Senhor» (2ª Tm. 1, 8) em atos e
palavras. O martírio é o supremo testemunho dado em
favor da verdade da fé.
2507. O respeito pelo bom nome e pela honra das
pessoas proíbe toda e qualquer atitude ou palavra de
maledicência ou calúnia.
2508. A mentira consiste em dizer o que é falso, com
a intenção de enganar o próximo.
2509. Uma falta cometida contra a verdade exige
reparação.
2510. Em situações concretas, a regra de ouro ajuda a
discernir se convém ou não revelar a verdade a quem a
pede.
2511. «O sigilo sacramental é inviolável»
(CIC can. 983, § 1). Os segredos profissionais devem ser
guardados. As confidências prejudiciais a outrem não
devem ser divulgadas.
2512. A sociedade tem direito a uma informação
fundada na verdade, na liberdade e na justiça. É preciso
impor-se moderação e disciplina no uso dos meios de
comunicação social.
2513. As belas-artes, mas sobretudo a arte sacra,
«estão relacionadas, por sua natureza, com a infinita
beleza de Deus, que deve ser expressa de algum modo nas
obras humanas. E tanto mais se consagram a Deus e
contribuem para o seu louvor e para a sua glória,
quanto mais se afastarem de todo o propósito que não
seja o de contribuir o mais eficazmente possível,
através das suas obras, para dirigir o espírito dos
homens, piamente, para Deus»
(II
Concílio do Vaticano, Const. Sacrosanctum Concilium,
122: AAS 56 (1964) 130-131).
ARTIGO 9
O NONO MANDAMENTO
«Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a
mulher do próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem
o seu boi, ou o seu jumento, nem nada que lhe pertença»
(Ex. 20, 17).
«Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já
cometeu adultério com ela no seu coração»
(Mt. 5, 28).
2514. São João distingue três espécies de cupidez ou
concupiscência: a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a soberba da vida
(Cf. 1ª Jo. 2, 16 (Vulgata)).
Segundo a tradição catequética católica, o nono
mandamento proíbe a concupiscência carnal; e o décimo, a
cobiça dos bens alheios.
2515. Em sentido etimológico, «concupiscência»
pode designar todas as formas veementes de desejo
humano. A teologia cristã deu-lhe o sentido particular
de impulso do apetite sensível, contrário aos ditames da
razão humana. O apóstolo São Paulo identifica-a com a
revolta que a «carne» instiga contra o
«espírito»
(Cf. Gl. 5, 16.17.24; Ef. 2, 3).
Procede da desobediência do primeiro pecado
(Cf. Gn. 3, 11).
Desregra as faculdades morais do homem e, sem ser
nenhuma falta em si mesma, inclina o homem para cometer
pecado
(Cf. Concílio de Trento, Sess. 5ª, Decretum de
peccato originali, can. 5: DS 1515).
2516. No homem, porque é um ser integrado de espírito
e corpo, já existe uma certa tensão. Trava-se nele
uma certa luta de tendências entre o «espírito» e
a «carne». Mas esta luta, de fato, faz parte da
herança do pecado, é uma consequência dele e, ao mesmo
tempo, uma sua confirmação. Faz parte da experiência
quotidiana do combate espiritual:
- «para o Apóstolo, não se trata de desprezar e condenar
o corpo que, com a alma espiritual, constitui a natureza
do homem e a sua personalidade de sujeito; pelo
contrário, ele fala das obras, ou antes, das disposições
estáveis, virtudes e vícios, moralmente boas ou más, que
são o fruto da submissão (no primeiro caso) ou, pelo
contrário, da resistência (no segundo caso) à ação
salvadora do Espírito Santo. É por isso que o Apóstolo
escreve: "se vivemos pelo Espírito, caminhemos também
segundo o espírito"»
(Gl. 5, 25)
(João
Paulo II, Enc. Dominum et vivificantem, 55: AAS
78 (1986) 877-878).
I. A purificação do coração
2517. O coração é a sede da personalidade moral: «do
coração procedem as más intenções, os assassínios, os
adultérios, as prostituições» (Mt. 15, 19). A luta
contra a concupiscência carnal passa pela purificação do
coração e pela prática da temperança:
- «mantém-te na simplicidade, na inocência, e serás como
as criancinhas que ignoram o mal, destruidor da vida dos
homens»
(Hermas, Pastor 27, 1 (mandatum 2.
1): SC 53, 146 (Funk 1, 70)).
2518. A sexta bem-aventurança proclama:
«bem-aventurados os puros de coração, porque verão a
Deus» (Mt. 5, 8). Os «puros de coração»
são os que puseram a inteligência e a vontade de acordo
com as exigências da santidade de Deus, principalmente
em três domínios: a caridade
(Cf. 1ª Ts. 4, 3-9: 2ª Tm. 2, 22);
a castidade ou retidão sexual
(Cf. 1ª Ts. 4, 7; Cl. 3, 5; Ef. 4, 19);
o amor da verdade e a ortodoxia da fé
(Cf. Tt. 1, 15; 1ª Tm. 1, 3-4; 2ª Tm. 2, 23-26),
existe um nexo entre a pureza do coração, do corpo e da
fé:
- os fiéis devem crer nos artigos do Credo, «para
que, crendo, obedeçam a Deus; obedecendo a Deus, vivam
como deve ser; vivendo como deve ser, purifiquem o seu
coração; e purificando o seu coração, compreendam aquilo
em que creem»
(Santo Agostinho, De fide et symbolo, 10, 25:
CSEL 25, 32 (PL 40, 196)).
2519. Aos «puros de coração» é prometido que
verão a Deus face a face e serão semelhantes a Ele
(Cf. 1ª Cor. 13, 12; l Jo. 3. 2).
A pureza do coração é condição prévia para a visão. Já
desde agora, permite-nos ver segundo Deus,
aceitar o outro como um «próximo» e compreender o corpo
humano, o nosso e o do próximo, como um templo do
Espírito Santo, uma manifestação da beleza divina.
II. O combate pela pureza
2520. O Batismo confere a quem o recebe a graça da
purificação de todos os pecados. Mas o batizado tem de
continuar a lutar contra a concupiscência da carne e os
desejos desordenados. Com a graça de Deus,
consegui-lo-ei:
- pela virtude e pelo dom da castidade,
pois a castidade permite amar com um coração reto e sem
partilha;
- pela pureza de intenção, que consiste em ter em
vista o verdadeiro fim do homem: com um olhar simples, o
batizado procura descobrir e cumprir em tudo a vontade
de Deus
(Cf. Rm. 12, 2; Cl. 1, 10);
- pela pureza do olhar, exterior e interior; pela
disciplina dos sentidos e da imaginação; pela rejeição
da complacência em pensamentos impuros que o levariam a
desviar-se do caminho dos mandamentos divinos: «a
vista excita a paixão dos insensatos» (Sb. 15, 5).
- pela oração:
- «eu pensava que a continência dependia das minhas
próprias forças, forças que em mim não conhecia. E era
suficientemente louco para não saber [...] que ninguém
pode ser continente, se Tu lhe não concederes. E de
certo Tu o terias concedido, se com gemido interior eu
chamasse aos teus ouvidos e se com fé sólida lançasse em
Ti o meu cuidado»
(Santo Agostinho, Confissões, 6, 11, 20:
CCL 27. 87 (PL 32, 729-730)).
2521. A pureza exige o pudor. O pudor é parte
integrante da temperança. O pudor preserva a intimidade
da pessoa. Designa a recusa de mostrar o que deve ficar
oculto. Ordena-se à castidade e comprova-lhe a
delicadeza. Orienta os olhares e as atitudes em
conformidade com a dignidade das pessoas e com a união
que existe entre elas.
2522. O pudor protege o mistério da pessoa e do seu
amor. Convida à paciência e à moderação na relação
amorosa e exige que se cumpram as condições do dom e do
compromisso definitivo do homem e da mulher entre si. O
pudor é modéstia. Inspira a escolha do vestuário, mantém
o silêncio ou o recato onde se adivinha o perigo duma
curiosidade malsã. O pudor é discrição.
2523. Existe um pudor dos sentimentos, tal como existe
um pudor corporal. Ele protesta, por exemplo, contra as
explorações exibicionistas do corpo humano em certa
publicidade, ou contra a solicitação de certos meios de
comunicação em ir longe demais na revelação de
confidências íntimas. O pudor inspira um modo de viver
que permite resistir às solicitações da moda e à pressão
das ideologias dominantes.
2524. As formas de que o pudor se reveste variam de
cultura para cultura. No entanto, ele continua a ser, em
toda a parte, o pressentimento duma dignidade espiritual
própria do homem. Nasce com o despertar da consciência
pessoal. Ensinar o pudor às crianças e adolescentes é
despertá-los para o respeito pela pessoa humana.
2525. A pureza cristã exige uma purificação do
ambiente social. Exige dos meios de comunicação
social uma informação preocupada com o respeito e o
recato. A pureza de coração liberta do erotismo difuso e
afasta dos espetáculos que favorecem a curiosidade
mórbida e a ilusão.
2526. A chamada permissividade dos costumes
assenta numa concepção errónea da liberdade humana;
para se edificar, esta precisa de se deixar educar
previamente pela lei moral. Deve pedir-se aos
responsáveis pela educação que ministrem à juventude um
ensino respeitador da verdade, das qualidades do coração
e da dignidade moral e espiritual do homem.
2527. «A boa-nova de Cristo renova constantemente a
vida e a cultura do homem decaído; combate e repele os
erros e os males provenientes da sedução sempre
ameaçadora do pecado. Purifica e eleva sem cessar a
moralidade dos povos. Com as riquezas do alto, fecunda,
consolida, completa e restaura em Cristo, como que a
partir de dentro, as qualidades espirituais e os dotes
de todos os povos e eras»
(II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et
spes, 58: AAS 58 (1966) 1079).
Resumindo:
2528. «Todo aquele que olhar para uma mulher,
desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu
coração» (Mt. 5, 28).
2529. O nono mandamento acautela-nos contra a cupidez
ou concupiscência carnal.
2530. A luta contra a concupiscência carnal passa
pela purificação do coração e pela prática da
temperança.
2531. A pureza de coração permitir-nos-á ver a Deus:
desde já, permite-nos ver tudo segundo Deus.
2532. A purificação do coração exige a oração, a
prática da castidade, a pureza de intenção e do olhar.
2533. A pureza do coração requer o pudor que é
paciência, modéstia e discrição. O pudor preserva a
intimidade da pessoa.
ARTIGO 10
O DÉCIMO MANDAMENTO
«Não cobiçarás [...] nada que pertença [ao teu próximo]»
(Ex. 20, 17). «Não cobiçarás a casa [do teu próximo],
nem o seu campo, nem o seu servo nem a sua serva, o seu
boi, ou o seu jumento, nem nada que lhe pertença»
(Dt. 5, 21).
«Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu
coração»
(Mt. 6, 21).
2534. O décimo mandamento desdobra e completa o nono,
que tem por objeto a concupiscência da carne. Proíbe
cobiçar o bem de outrem, raiz de onde procede o roubo, a
rapina e a fraude, proibidos pelo sétimo mandamento. A
«concupiscência dos olhos» (1ª Jo. 2, 16) conduz
à dolência e à injustiça, proibidas pelo quinto
mandamento
(Cf. Mq. 2, 2).
A cobiça, bem como a fornicação, tem a sua origem na
idolatria, proibida nos três primeiros mandamentos da
Lei
(Cf. Sb. 14, 12).
O décimo mandamento incide sobre a intenção do coração e
resume, com o nono, todos os preceitos da Lei.
I. A desordem das cobiças
2535. O apetite sensível leva-nos a desejar as
coisas agradáveis que não possuímos. Exemplo disso é
desejar comer quando se tem fome ou aquecer-se quando se
tem frio. Estes desejos são bons em si mesmos; muitas
vezes, porém, não respeitam os limites da razão e
levam-nos a cobiçar injustamente o que não é nosso e que
pertence, ou é devido, a outrem.
2536. O décimo mandamento condena a avidez e o
desejo duma apropriação desmesurada dos bens terrenos; e
proíbe a cupidez desregrada, nascida da paixão
imoderada das riquezas e do seu poder. Interdita também
o desejo de cometer uma injustiça pela qual se
prejudicaria o próximo nos seus bens temporais:
- «quando a Lei nos diz: "não cobiçarás", diz-nos, por
outras palavras, que afastemos os nossos desejos de tudo
o que não nos pertence. Porque a sede da cobiça dos bens
alheios é imensa, infindável e insaciável, conforme está
escrito: "o avarento nunca se fartará de dinheiro"»
(Sir. 5, 9)
(Cat Rom 3, 10, 13, p. 518).
2537. Não é violar este mandamento desejar obter coisas
que pertencem ao próximo, desde que seja por meios
legítimos. A catequese tradicional menciona, com
realismo, «os que têm que lutar mais contra as suas
cobiças criminosas» e que, portanto, precisam de ser
«exortados com mais insistência a observarem este
preceito»:
- «são [.. .] os comerciantes que desejam a falta ou
carestia das coisas, que veem com pena não serem eles os
únicos a comprar e a vender, o que lhes permitiria
vender mais caro e comprar mais barato; os que desejam
ver o seu semelhante na miséria, para obterem maiores
lucros, quer vendendo quer comprando [...]. Os médicos,
que desejam que haja doentes; os advogados, que reclamam
causas e processos importantes e numerosos...»
(Cat Rom 3, 10, 23, p. 523).
2538. O décimo mandamento exige que seja banida a
inveja do coração humano. Quando o profeta Natan
quis estimular o arrependimento do rei David, contou-lhe
a história do pobre que só possuía uma ovelha, tratada
como se fosse uma filha, e do rico que, apesar dos seus
numerosos rebanhos, tinha inveja dele e acabou por lhe
roubar a ovelha
(Cf. 2ª Sm. 12, 1-4).
A inveja pode levar aos piores crimes
(Cf. Gn. 4, 3-8; 1º Rs. 21, 1-29).
«Foi pela inveja do demónio que a morte entrou no
mundo» (Sb. 2, 24).
- «Combatemo-nos uns aos outros e é a inveja que nos
arma uns contra os outros [...]. Se todos se encarniçam
assim a abalar o corpo de Cristo, onde chegaremos nós?
Estamos a aniquilar o corpo de Cristo. [...]
Declaramo-nos membros dum mesmo organismo e devoramo-nos
como feras»
(São João Crisóstomo, In epistulam II ad Corinthios,
homilia 27, 3-4: PG 61, 588).
2539. A inveja é um vício capital. Designa a tristeza
que se sente perante o bem alheio e o desejo imoderado
de se apropriar dele, mesmo indevidamente. Se desejar ao
próximo um mal grave, é pecado mortal:
- Santo Agostinho via na inveja «o pecado diabólico
por excelência»
(Santo Agostinho, De disciplina christiana, 7, 7:
CCL 46, 214 (PL 40, 673); ID., Epistula 108, 3,
8: CSEL 34, 620 (PL 33, 410)).
«Da inveja nascem o ódio, a maledicência, a calúnia,
a alegria causada pelo mal do próximo e o desgosto
causado pela sua prosperidade»
(São Gregório Magno, Moralia in Job, 31, 45, 88:
CCL 143b, 1610 (PL 76, 621)).
2540. A inveja representa uma das formas da tristeza e,
portanto, uma recusa da caridade; o batizado lutará
contra ela, opondo-lhe a benevolência. Muitas vezes, a
inveja nasce do orgulho; o batizado exercitar-se-á a
viver na humildade:
- «quereríeis ver Deus glorificado por vós? Pois bem,
alegrai-vos com os progressos do vosso irmão e, assim,
será por vós que Deus é glorificado. Deus será louvado,
dir-se-á, pelo facto de o seu servo ter sabido vencer a
inveja, pondo a sua alegria nos méritos dos outros»
(São João Crisóstomo, In epistulam as Romanos,
homilia 7, 5: Pg. 60, 448).
II. Os desejos do Espírito
2541. A economia da lei e da graça desvia o coração dos
homens da cobiça e da inveja; inicia-o no desejo do sumo
bem; e instrui-o nos desejos do Espírito Santo que sacia
o coração do homem.
O Deus das promessas desde sempre pôs o homem de
prevenção contra a sedução daquilo que, desde as
origens, aparece como «bom para comer, [...] de
atraente aspecto e precioso para esclarecer a
inteligência» (Gn, 3, 6).
2542. A Lei, confiada a Israel, nunca foi suficiente
para justificar aqueles que lhe estavam sujeitos; chegou
até a tornar-se instrumento de «concupiscência»
(Cf. Rm. 7, 7).
A inadequação entre o querer e o fazer
(Cf. Rm. 7, 15)
manifesta o conflito entre a Lei de Deus, que é a
«lei da razão», e uma outra lei «que me retém
cativo na lei do pecado, que se encontra nos meus
membros» (Rm. 7, 23).
2543. «Agora, foi sem a Lei que se manifestou a
justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas:
a justiça que vem para todos os crentes, mediante a fé
em Jesus Cristo» (Rm. 3, 21-22). E assim, os fiéis
de Cristo «crucificaram a carne com as suas paixões e
desejos» (Gl. 5, 24); são conduzidos pelo Espírito
(Cf. Rm. 8, 14)
e seguem os desejos do Espírito
(Cf. Rm. 8, 27).
III. A pobreza de coração
2544. Jesus impõe aos seus discípulos que O prefiram a
tudo e a todos e propõe-lhes que renunciem a todos os
seus bens
(Cf. Lc. 14, 33)
por causa d'Ele e do Evangelho
(Cf. Mc. 8, 35).
Pouco antes da sua paixão, deu-lhes o exemplo da pobre
viúva de Jerusalém que, da sua penúria, deu tudo o que
tinha para viver
(Cf. Lc. 21, 4).
O preceito do desapego das riquezas é obrigatório para
entrar no Reino dos céus.
2545. Todos os fiéis de Cristo devem «ordenar
retamente os próprios afetos, para não serem impedidos
de avançar na perfeição da caridade pelo uso das coisas
terrenas e pelo apego às riquezas, em oposição ao
espírito de pobreza evangélica»
(II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Lumen Gentium,
42: AAS 57 (1965) 49).
2546. «Bem-aventurados os pobres em espírito»
(Mt. 5, 3). As bem-aventuranças revelam uma ordem de
felicidade e de graça, de beleza e de paz. Jesus celebra
a alegria dos pobres, aos quais o Reino pertence desde
já
(Cf. Lc. 6, 20):
- «o Verbo chama "pobreza em espírito" à humildade
voluntária do espírito humano e à sua renúncia; e o
Apóstolo dá-nos como exemplo a pobreza de Deus, quando
diz: «Ele fez-Se pobre por nós»
(2ª Cor. 8, 9)
(São Gregório de Nissa, De beatitudinibus, oratio
1: Gregorii Nysenni opera, ed. W. Jaeger, v. 7/2
(Leiden 1992) p. 83 (Pg. 44, 1200)).
2547. O Senhor lamenta-Se dos ricos, porque eles
encontram a sua consolação na abundância de bens
(Cf. Lc. 6, 24).
«O orgulhoso procura o poder terreno, ao passo que o
pobre em espírito procura o Reino dos céus»
(Santo Agostinho, De sermone Domini in monte, 1,
1, 3: CCL 35, 4 (PL 34, 1232)).
O abandono à providência do Pai do céu liberta da
preocupação pelo amanhã. A confiança em Deus dispõe para
a bem-aventurança dos pobres
(Cf. Mt. 6, 25-34). Eles verão a Deus.
IV. «Quero ver a Deus»
2548. O desejo da verdadeira felicidade liberta o homem
do apego imoderado aos bens deste mundo, e terá a sua
plenitude na visão beatífica de Deus. «A promessa de
ver a Deus ultrapassa toda a bem-aventurança. [...] Na
Escritura, ver é possuir. [...] Por isso aquele que vê a
Deus obteve todos os bens que se possam imaginar»
(São Gregório de Nissa, De beatitudinibus, oratio
6: Gregorii Nysenni opera, ed. W. Jaeger. v.
7/2 (Leiden 1992) p. 138 (PG 44, 1265)).
2549. Resta ao povo santo lutar, com a graça do Alto,
para alcançar os bens que Deus promete. Para possuir e
contemplar a Deus, os fiéis de Cristo mortificam os seus
maus desejos e, com a graça do mesmo Deus, triunfam das
seduções do prazer e do poder.
2550. Neste caminho da perfeição, o Espírito e a Esposa
chamam quem os escuta
(Cf. Ap. 22, 17)
à comunhão perfeita com Deus:
- «ali será a verdadeira glória; ninguém ali será
louvado por engano ou por lisonja; as verdadeiras honras
não serão nem recusadas aos que as merecem, nem dadas
aos indignos delas; aliás, não haverá ali indigno que as
pretenda, pois só os dignos lá serão admitidos. Ali
reinará a verdadeira paz; ninguém terá oposição, nem de
si mesmo nem dos outros. O próprio Deus será a
recompensa da virtude, Ele que a deu e Se lhe prometeu
como recompensa, a maior e melhor que possa existir:
[...] "Eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo"
(Lv. 26, 12) [...] É também este o sentido das
palavras do Apóstolo: "para que Deus seja tudo em todos"
(1ª Cor. 15, 28). Ele mesmo será o fim dos nossos
desejos, Ele que nós havemos de contemplar sem fim, de
amar sem saciedade, de louvar sem cansaço. É este dom,
este afeto, esta ocupação será, sem dúvida, comum a
todos como a vida eterna»
(Santo Agostinho, De civitate Dei, 22, 30: CSEL
40/2, 665-666 (PL 41, 801-802)).
Resumindo:
2551. «Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o
teu coração» (Mt. 6, 21).
2552. O décimo mandamento proíbe a cupidez
desregrada, nascida da paixão imoderada das riquezas e
seu poder.
2553 Inveja é a tristeza que
se experimenta perante o bem alheio e o desejo imoderado
de se apropriar dele. É um vício capital.
2554 O batizado combate a inveja pela benevolência,
pela humildade e pelo abandono à providência divina.
2555. Os fiéis de Cristo «crucificaram a carne com as
suas paixões e desejos» (Gl. 5, 24); são
conduzidos pelo Espírito e seguem os seus desejos.
2556. O desapego das riquezas é necessário para
entrar no Reino dos céus. «Bem-aventurados os pobres em
espírito» (Mt. 5, 3).
2557. O homem de desejo diz: «quero ver a Deus», sede
de Deus é saciada pela água da vida eterna»
(Cf.
Jo 4, 14).
QUARTA PARTE - A ORAÇÃO CRISTÃ
PRIMEIRA SECÇÃO
A ORAÇÃO NA VIDA CRISTÃ
2558. «Mistério admirável da nossa fé!». A Igreja
professa-o no Símbolo dos Apóstolos (primeira parte)
e celebra-o na liturgia sacramental (segunda
parte), para que a vida dos fiéis seja configurada
com Cristo no Espírito Santo para glória de Deus Pai
(terceira parte). Este mistério exige, portanto, que
os fiéis nele creiam, o celebrem e dele vivam, numa
relação viva e pessoal com o Deus vivo e verdadeiro.
Esta relação é a oração.
O QUE É A ORAÇÃO?
«Para mim, a oração é um impulso do coração, é um
simples olhar lançado para o céu, é um grito de gratidão
e de amor, tanto no meio da tribulação como no meio da
alegria»
(Santa Teresa do Menino Jesus, Manuscrit C, 25r:
Manuscrits autobiographiques (Paris 1992) p.
389-390. [Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face,
Obras Completas (Paço de Arcos, Edições do Carmelo 1996)
p. 276]).
A ORAÇÃO COMO DOM DE DEUS
2559. «A oração é a elevação da alma para Deus ou o
pedido feito a Deus de bens convenientes»
(São João Damasceno, Expositio fidei, 68 [De
fide orthodoxa 3, 24]: PTS 12, 167 (PG 94, 1089)).
De onde é que falamos, ao orar? Das alturas do nosso
orgulho e da nossa vontade própria, ou das
«profundezas» (Sl. 130, 1) dum coração humilde e
contrito? Aquele que se humilha é que é elevado
(Cf. Lc. 18, 9-14).
A humildade é o fundamento da oração. «Não
sabemos o que havemos de pedir para rezarmos como deve
ser» (Rm. 8, 26). A humildade é a disposição
necessária para receber gratuitamente o dom da oração: o
homem é um mendigo de Deus
(Cf. Santo Agostinho, Sermão 56, 6, 9: ed. P.
Verbraken: Revue Bénédictine 68 (1958) 31 (PL 38, 381)).
2560. «Se conhecesses o dom de Deus»! (Jo. 4,
10). A maravilha da oração revela-se precisamente, à
beira dos poços aonde vamos buscar a nossa água: aí é
que Cristo vem ao encontro de todo o ser humano; Ele
antecipa-se a procurar-nos e é Ele que nos pede de
beber. Jesus tem sede, e o seu pedido brota das
profundezas de Deus que nos deseja. A oração, saibamo-lo
ou não, é o encontro da sede de Deus com a nossa. Deus
tem sede de que nós tenhamos sede d'Ele
(Cf. Santo Agostinho, De diversis quaestionibus
octoginta tribus, 64, 4: CCL 44A, 140 (PL 40, 56)).
2561. «Tu é que Lhe terias pedido e Ele te daria água
viva» (Jo. 4, 10). Paradoxalmente, a nossa oração de
súplica é uma resposta. Resposta ao lamento do Deus
vivo: «abandonou-Me a Mim, nascente de águas vivas, e
foi escavar cisternas fendidas» (Jr. 2, 13);
resposta de fé à promessa gratuita da salvação
(Cf. Jo. 7, 37-39; Is. 12, 3; 51, 1);
resposta de amor à sede do Filho Único
(Cf. Jo 19, 28; Zc 12, 10; 13, 1).
A ORAÇÃO COMO ALIANÇA
2562. De onde procede a oração do homem? Seja qual for a
linguagem da oração (gestos e palavras), é o homem todo
que ora. Mas para designar o lugar de onde brota a
oração, as Escrituras falam às vezes da alma ou do
espírito ou, com mais frequência, do coração (mais de
mil vezes). É o coração que ora. Se ele estiver
longe de Deus, a expressão da oração será vã.
2563. O coração é a morada onde estou, onde habito (e
segundo a expressão semítica ou bíblica, aonde eu
«desço»). É o nosso centro oculto, inapreensível,
quer para a nossa razão quer para a dos outros: só o
Espírito de Deus é que o pode sondar e conhecer. E o
lugar da decisão, no mais profundo das nossas tendências
psíquicas. É a sede da verdade, onde escolhemos a vida
ou a morte. É o lugar do encontro, já que, à imagem de
Deus, vivemos em relação: é o lugar da aliança.
2564. A oração cristã é uma relação de aliança entre
Deus e o homem em Cristo. É ação de Deus e do homem;
jorra do Espírito Santo e de nós, toda orientada para o
Pai, em união com a vontade humana do Filho de Deus
feito homem.
A ORAÇÃO COMO COMUNHÃO
2565. Na Nova Aliança, a oração é a relação viva dos
filhos de Deus com o seu Pai infinitamente bom, com o
seu Filho Jesus Cristo e com o Espírito Santo. A graça
do Reino é «a união de toda a Santíssima Trindade com
a totalidade do espírito»
(São Gregório Nazianzo, Oratio 16, 9: PG 35, 945).
Assim, a vida de oração consiste em estar habitualmente
na presença do Deus três vezes santo e em comunhão com
Ele. Esta comunhão de vida é sempre possível porque,
pelo Batismo, nos tornámos um só com Cristo
(Cf. Rm. 6, 5).
A oração é cristã na medida em que for comunhão
com Cristo, dilatando-se na Igreja que é o seu corpo. As
suas dimensões são as do amor de Cristo
(Cf. Ef. 3, 18-21).
PRIMEIRA SECÇÃO
A ORAÇÃO NA VIDA CRISTÃ
CAPÍTULO PRIMEIRO
A REVELAÇÃO DA ORAÇÃO
O apelo universal à oração
2566. O homem anda à procura de Deus. Pela
criação, Deus chama todos os seres do nada à existência.
Coroado de glória e esplendor
(Cf. Sl. 8, 6),
o homem, depois dos anjos, é capaz de reconhecer «que
o nome do Senhor é grande em toda a terra»
(Cf. Sl. 8, 2).
Mesmo depois de, pelo pecado, ter perdido a semelhança
com Deus, o homem continua a ser à imagem do seu
Criador. Conserva o desejo d'Aquele que o chama à
existência. Todas as religiões testemunham esta busca
essencial do homem
(Cf. At. 17, 27).
2567. Mas é Deus que primeiro chama o homem.
Muito embora o homem se esqueça do seu Criador ou se
esconda da sua face, corra atrás dos ídolos ou acuse a
divindade de o ter abandonado, o Deus vivo e verdadeiro
chama incansavelmente cada pessoa ao misterioso encontro
da oração. Na oração, é sempre o amor do Deus fiel a dar
o primeiro passo; o passo do homem é sempre uma
resposta. A medida que Deus Se revela e revela o homem a
si mesmo, a oração surge como um apelo recíproco, um
drama de aliança. Através das palavras e dos atos, este
drama compromete o coração e manifesta-se ao longo de
toda a história da salvação.
ARTIGO 1
NO ANTIGO TESTAMENTO
2568. A revelação da oração no Antigo Testamento
inscreve-se entre a queda e o levantar-se do homem,
entre o doloroso chamamento de Deus pelos seus primeiros
filhos: «onde estás? [...] Porque fizeste isso»?
(Gn. 3, 9,13), e a resposta do Filho único, ao entrar
neste mundo: «eis que venho, [...] ó Deus, para fazer
a tua vontade» (Heb. 10, 7)
(Cf. Heb. 10, 5-7). A oração está assim ligada à história dos
homens; é a relação com Deus nos acontecimentos da
história.
A CRIAÇÃO - FONTE DA ORAÇÃO
2569. Antes de mais, é a partir das realidades da
criação que a oração se vive. Os nove primeiros
capítulos do Génesis descrevem esta relação com Deus
como oferta das primeiras crias do rebanho por Abel
(Cf. Gn. 4, 4),
como invocação do nome divino por Henoc
(Cf. Gn. 4, 26),
como «caminhada com Deus»
(Cf. Gn. 5, 24).
A oferenda de Noé é «agradável» a Deus que o
abençoa e, através dele, abençoa toda a criação
(Cf. Gn. 8, 20-9, 17)
porque o seu coração é justo e íntegro. Também ele
«anda com Deus» (Gn. 6, 9). Esta qualidade da oração
é vivida por uma multidão de justos em todas as
religiões.
Na sua aliança indefectível com os seres vivos
(Cf. Gn. 9, 8-16), Deus está sempre a chamar os homens para
lhe rezarem. Mas é sobretudo a partir do nosso Pai
Abraão que a oração se revela no Antigo Testamento.
A PROMESSA E A ORAÇÃO DA FÉ
2570. Quando Deus o chama, Abraão parte «como o
Senhor lhe tinha mandado» (Gn. 12, 4). O seu coração
está completamente «submetido à Palavra»: ele
obedece. A escuta do coração que se decide em
conformidade com Deus é essencial à oração; as palavras
têm um valor relativo. Mas a oração de Abraão
exprime-se, antes de mais, em atos: homem de silêncio,
constrói, em cada etapa, um altar ao Senhor. Só mais
tarde é que aparece a sua primeira oração por palavras:
uma queixa velada que lembra a Deus as suas promessas
que não parecem cumprir-se
(Cf. Gn. 15, 2-3).
Assim nos aparece, desde o princípio, um dos aspectos do
drama da oração: a prova da fé na fidelidade de Deus.
2571. Tendo acreditado em Deus
(Cf. Gn. 15, 6)
caminhando na sua presença e em aliança com Ele
(Cf. Gn. 17, 1-2),
o patriarca está pronto para acolher na sua tenda o
Hóspede misterioso: é a admirável hospitalidade de
Mambré, prelúdio da Anunciação do verdadeiro Filho da
promessa
(Cf. Gn. 18, 1-15; Lc. 1, 26-38).
Desde então, tendo-lhe Deus confiado o seu desígnio, o
coração de Abraão fica em sintonia com a compaixão do
seu Senhor pelos homens e ousa interceder por eles com
uma confiança audaciosa
(Cf. Gn. 18, 16-33).
2572. Como última purificação da sua fé, é pedido ao
«depositário das promessas» (Heb. 11, 17) que
sacrifique o filho que Deus lhe deu. A sua fé não
vacila: «Deus proverá quanto ao cordeiro para o
holocausto» (Gn. 22, 8), «porque Deus, pensava
ele, é capaz até de ressuscitar os mortos» (Heb. 11,
19). E assim, o pai dos crentes conformou-se com a
semelhança do Pai que não poupará o seu próprio Filho,
mas O entregará por todos nós
(Cf. Rm. 8, 32).
A oração restaura o homem na semelhança com Deus e fá-lo
participante no poder do amor de Deus que salva a
multidão
(Cf. Rm. 4, 16-21).
2573. Deus renova a sua promessa a Jacob, o antepassado
das doze tribos de Israel
(Cf. Gn. 28, 10-22).
Antes de enfrentar o seu irmão Esaú, ele luta durante
uma noite inteira com «alguém», um ser misterioso
que se nega a revelar o seu nome, mas que o abençoa,
antes de o deixar, ao raiar da aurora. A tradição
espiritual da Igreja divisou nesta narrativa o símbolo
da oração como combate da fé e vitória da perseverança
(Cf. Gn. 32, 25-31; Lc. 18, 1-8).
MOISÉS E A ORAÇÃO DO MEDIADOR
2574. Quando começa a realizar-se a promessa (a Páscoa,
o Êxodo, o dom da Lei e a conclusão da Aliança), a
oração de Moisés é a tocante figura da oração de
intercessão, que terá a sua realização no «Mediador
único entre Deus e os homens, Cristo Jesus» (1ª Tm.
2, 5).
2575. Também aqui, a iniciativa é de Deus. Ele
chama Moisés do meio da sarça ardente
(Cf. Ex. 3, 1-10).
Este acontecimento ficará como uma das figuras
primordiais da oração na tradição espiritual judaica e
cristã. Com efeito, se «o Deus de Abraão, de Isaac e
de Jacob» chama o seu servo Moisés, é porque Ele é o
Deus vivo, que quer a vida dos homens. Revela-Se para os
salvar, mas não sozinho nem apesar deles: chama Moisés
para o enviar, para o associar à sua compaixão, à sua
obra de salvação. Há como que uma imploração divina
nesta missão e Moisés, após um longo debate, conformará
a sua vontade com a de Deus salvador. Mas neste diálogo
em que Deus Se confia, Moisés também aprende a orar:
esquiva-se, objeta e, sobretudo, interroga. E é em
resposta à sua pergunta que o Senhor lhe confia o seu
Nome inefável, o qual se revelará nas suas magníficas
proezas.
2576. «O Senhor falava com Moisés frente a frente,
como um homem fala com o seu amigo» (Ex. 33, 11). A
oração de Moisés é o tipo da contemplação, graças à qual
o servo de Deus se mantém fiel à sua missão. Moisés
«conversa» muitas vezes e demoradamente com o
Senhor, subindo à montanha para O ouvir e O implorar,
descendo depois até junto do povo para lhe repetir as
palavras do seu Deus e o guiar. «Eu estabeleci-o
sobre toda a minha casa! Falo com ele frente a frente, à
vista e não por enigmas» (Nm. 12, 7-8), porque
«Moisés era um homem deveras humilde, mais que todos os
homens que há sobre a face da terra» (Nm. 12, 3).
2577. Nesta intimidade com o Deus fiel, lento em irar-se
e cheio de amor
(Cf. Ex. 34, 6),
Moisés hauriu a força e a tenacidade da sua intercessão.
Ele não ora por si, mas pelo povo que Deus adquiriu para
Si. Já durante o combate com os amalecitas
(Cf. Ex. 17, 8-13)
ou para obter a cura de Miriam
(Cf. Nm. 12, 13-14),
Moisés foi intercessor. Mas foi sobretudo após a
apostasia do povo que ele «se mantém na brecha»
diante de Deus (Sl. 106, 23), para salvar o mesmo povo
(Cf. Ex. 32, 1-34, 9).
Os argumentos da sua oração (a intercessão também é um
combate misterioso) irão inspirar a audácia dos grandes
orantes, tanto do povo judaico como da Igreja: Deus é
amor e, portanto, é justo e fiel; Ele não pode
contradizer-Se; há -de, por conseguinte, lembrar-se das
suas ações maravilhosas; está em jogo a sua glória; Ele
não pode abandonar o povo que tem o seu nome.
DAVID E A ORAÇÃO DO REI
2578. A oração do povo de Deus vai expandir-se à sombra
da morada de Deus: a arca da aliança e, mais tarde, o
templo. São, em primeiro lugar os condutores do povo -
os pastores e os profetas - que o ensinarão a orar. O
pequeno Samuel teve de aprender de Ana, sua mãe, o modo
como devia «comportar-se na presença do Senhor»
(Cf. 1º Sm. 1, 9-18),
e do sacerdote Eli, como devia escutar a sua Palavra:
«falai, Senhor, que o vosso servo escuta» (1º Sm. 3,
9-10). Mais tarde, também ele conhecerá o peso e o
preço da intercessão: «longe de mim também este
pecado contra o Senhor: deixar de rogar por vós! Eu vos
mostrarei sempre o caminho bom e reto» (1º Sm. 12,
23).
2579. David é, por excelência, o rei «segundo o
coração de Deus», o pastor que ora pelo seu povo e
em nome dele, aquele cuja submissão à vontade de Deus,
cujo louvor e cujo arrependimento serão o modelo da
oração do povo. Ungido de Deus, a sua oração é adesão
fiel à promessa divina
(Cf. 2º Sm. 7, 18-29), confiança amorosa e alegre n'Aquele que é
o único Rei e Senhor. Nos salmos, inspirado pelo
Espírito Santo, David é o primeiro profeta da oração
judaica e cristã. A oração de Cristo, verdadeiro Messias
e Filho de David, há de revelar e dar pleno sentido
dessa oração.
2580. O templo de Jerusalém, a casa de oração que David
queria construir, será obra do seu filho Salomão. A
oração da Dedicação do templo
(Cf. 1º Rs. 8, 10-61) apoia-se na promessa de Deus e na sua
aliança, na presença ativa do seu nome no meio do seu
povo e na memória das magníficas proezas do êxodo. O rei
levanta então as mãos para o céu e suplica ao Senhor por
si próprio, por todo o povo, pelas gerações futuras,
pelo perdão dos seus pecados e pelas suas necessidades
de cada dia, para que todas as nações saibam que Ele é o
único Deus e o coração do seu povo Lhe pertença
inteiramente.
ELIAS, OS PROFETAS E A CONVERSÃO DO CORAÇÃO
2581. O templo devia ser, para o povo de Deus, o lugar
da sua educação para a oração: as peregrinações, as
festas, os sacrifícios, a oblação vespertina, o incenso,
os «pães da proposição», todos esses sinais da
santidade e da glória do Deus altíssimo e tão próximo,
eram apelos e caminhos de oração. Muitas vezes, porém, o
ritualismo arrastava o povo para um culto demasiadamente
exterior. Faltava-lhe a educação da fé e a conversão do
coração. Foi essa a missão dos profetas, antes e depois
do Exílio.
2582. Elias é o pai dos profetas, da geração dos que
procuram a Deus, dos que procuram a face do Deus de
Jacob
(Cf. Sl. 24, 6).
O seu nome - «o Senhor é o meu Deus» - é
prenúncio do grito do povo em resposta à sua oração no
monte Carmelo
(Cf. 1º Rs. 18, 39).
São Tiago remete para ele quando nos incita à oração:
«muito pode a oração persistente dum justo» (Tg. 5,
16)
(Cf. Tg. 5, 16-18).
2583. Depois de ter aprendido a misericórdia no seu
retiro na torrente de Querit, ensina à viúva de Sarepta
a fé na Palavra de Deus, fé que ele confirma com a sua
oração insistente: Deus faz voltar à vida o filho da
viúva
(Cf. 1º Rs. 17, 7-24).
Aquando do sacrifício no monte Carmelo, prova decisiva
para a fé do povo de Deus, é em resposta à sua súplica
que o fogo do Senhor consome o holocausto, «à hora de
oferecer o sacrifício da tarde». «Responde-me,
Senhor, responde-me» são as palavras de Elias, que
as liturgias orientais retomam na epiclese eucarística
(Cf. 1º Rs. 17, 7-24).
Finalmente, retomando o caminho do deserto em direção ao
lugar onde o Deus vivo e verdadeiro Se revelou ao seu
povo, Elias recolheu-se, como Moisés, «na cavidade do
rochedo», até «passar» a presença misteriosa
de Deus
(Cf. 1º Rs. 19, 1-14; Ex 33, 19-23).
Mas será somente no monte da transfiguração que se
mostrará sem véu Aquele cuja face eles procuravam
(Cf. Lc. 9, 30-35):
o conhecimento da glória de Deus está na face de Cristo,
crucificado e ressuscitado
(Cf. 2ª Cor. 4, 6).
2584. É no «a sós com Deus» que os profetas vão
haurir luz e força para a sua missão. A sua oração não é
uma fuga do mundo infiel, mas uma escuta da Palavra de
Deus, às vezes um debate ou uma queixa e sempre uma
intercessão que espera e prepara a intervenção do Deus
Salvador, Senhor da história
(Cf. Am. 7, 2.5; Is. 6, 5.8.11; Jr. 1, 6; 15, 15-18; 20,
7-18).
OS SALMOS, ORAÇÃO DA ASSEMBLEIA
2585. De David até à vinda do Messias, os livros
sagrados contêm textos de oração que atestam como está
se foi tornando mais profunda, quer feita em favor de si
mesmo quer pelos outros
(Cf. Esd. 9, 6-15; Ne. 1, 4-11; Jn. 2, 3-10; Tb. 3,
11-16; Jdt. 9, 2-14).
Os salmos foram a pouco e pouco reunidos numa coletânea
de cinco livros: os Salmos (ou «Louvores»),
obra-prima da oração no Antigo Testamento.
2586. Os salmos nutrem e exprimem a oração do povo de
Deus enquanto assembleia, por ocasião das grandes festas
em Jerusalém e em cada sábado nas sinagogas. Esta oração
é inseparavelmente pessoal e comunitária; diz respeito
aos que a fazem e a todos os homens; sobe da Terra Santa
e das comunidades da Diáspora, mas abraça toda a
criação; recorda os acontecimentos salvíficos do
passado, mas estende-se até à consumação da história;
faz memória das promessas de Deus já realizadas, mas
espera o Messias que as cumprirá definitivamente.
Rezados por Cristo e n'Ele realizados, os salmos
continuam a ser essenciais para a oração da sua Igreja
(Cf. Instrução geral da Liturgia das Horas,
100-109: Liturgia Horarum, editio typica, v.
1(Typis Polyglottis Vaticanis 1973) p. 52-56 [Liturgia
das Horas, v. 1 (Gráfica de Coimbra 1983) p. 54-58]).
2587. O Saltério é o livro em que a Palavra de
Deus se torna oração do homem. Nos outros livros do
Antigo Testamento, «as palavras declaram as obras»
(de Deus a favor dos homens) «e esclarecem o mistério
nelas contido»
(II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum,
2: AAS 58 (1966) 818).
No Saltério, as palavras do salmista exprimem,
cantando-as para Deus, as suas obras de salvação. É o
mesmo Espírito que inspira, tanto a obra de Deus, como a
resposta do homem. Cristo unirá uma e outra. N'Ele, os
salmos não cessam de nos ensinar a orar.
2588. As expressões multiformes da oração dos salmos
tomam forma, ao mesmo tempo, na liturgia do templo e no
coração do homem. Quer se trate dum hino, duma oração de
aflição ou de ação de graças, de súplica individual ou
comunitária, dum cântico real ou de peregrinação, ou
ainda duma meditação sapiencial, os salmos são o espelho
das maravilhas de Deus na história do seu povo e das
situações humanas vividas pelo salmista. Um salmo pode
refletir um acontecimento do passado, mas reveste-se de
tal sobriedade que pode com verdade ser rezado pelos
homens de qualquer condição e de todos os tempos.
2589. Há traços constantes e comuns a todos os salmos: a
simplicidade e a espontaneidade da oração; o desejar
Deus em pessoa, através e com tudo o que é bom na sua
criação; a situação desconfortável do crente que, no seu
amor de preferência pelo Senhor, tem de se confrontar
com uma multidão de inimigos e de tentações; a certeza
do seu amor e a entrega à sua vontade, enquanto espera o
que o Deus fiel fará. A oração dos salmos é sempre
animada pelo louvor; e é por isso que o título desta
coletânea corresponde bem ao que ela nos oferece: «os
Louvores». Coligida para o culto da assembleia,
faz-nos ouvir o apelo à oração e canta a resposta ao
mesmo apelo: «Hallelou-Ya» (Aleluia)! «Louvai
ao Senhor»!
- «Haverá coisa melhor que um salmo? É por isso que
David diz, e muito bem: "louvai o Senhor, porque
salmodiar é bom: para o nosso Deus, louvor suave e
belo"! E é verdade. Porque o salmo é uma bênção cantada
pelo povo, louvor de Deus cantado pela assembleia,
aplauso de todos, palavra universal, voz da Igreja,
melodiosa profissão de fé...»
(Santo Ambrósio, Enarrationes in Psalmos, 1, 9:
CSEL 64, 7 (PL14, 968)).
Resumindo:
2590. «A oração é a elevação da alma para Deus ou o
pedido feito a Deus de bens convenientes»
(São João Damasceno, Expositio fidei, 68 [De fide
orthodoxa 3, 24]: PTS 12, 167 (PG 94, 1089)).
2591. Deus não se cansa de chamar cada um,
pessoalmente, para o encontro misterioso com Ele. A
oração acompanha toda a história da salvação, como um
apelo recíproco entre Deus e o homem.
2592. A oração de Abraão e de Jacob apresenta-se como
um combate da fé, confiante na fidelidade de Deus e na
certeza da vitória prometida à perseverança.
2593. A oração de Moisés responde à iniciativa do
Deus vivo, com vista à salvação do seu povo. Prefigura a
oração de intercessão do único mediador, Cristo Jesus.
2594. A oração do povo de Deus expande-se à sombra da
morada de Deus, a arca da aliança e o templo, sob a guia
dos pastores, nomeadamente do rei David e dos profetas.
2595. Os profetas convidam à conversão do coração e,
procurando ardentemente a face de Deus, como Elias,
intercedem pelo povo.
2596. Os salmos constituem a obra-prima da oração no
Antigo Testamento. Apresentam duas componentes
inseparáveis: a pessoal e a comunitária. Estendem-se a
todas as dimensões da história, comemorando as promessas
de Deus já cumpridas e esperando a vinda do Messias.
2597. Rezados por Cristo e n'Ele realizados, os
salmos são um elemento essencial e permanente da oração
da sua Igreja. Adaptam-se aos homens de qualquer
condição e de todos os tempos.
ARTIGO 2
NA PLENITUDE DO TEMPO
2598. O drama da oração é-nos plenamente revelado no
Verbo que se faz carne e habita entre nós. Procurar
compreender a sua oração através do que as suas
testemunhas dela nos dizem no Evangelho, é aproximar-nos
do santo Senhor Jesus como da sarça ardente: primeiro,
contemplando-o a Ele próprio em oração; depois,
escutando como Ele nos ensina a rezar, para, finalmente,
conhecermos como é que Ele atende a nossa oração.
JESUS ORA
2599. O Filho de Deus, feito Filho da Virgem,
aprendeu a orar segundo o seu coração de homem. Aprendeu
as fórmulas de oração com a sua Mãe, que conservava e
meditava no seu coração todas as «maravilhas»
feitas pelo Onipotente
(Cf. Lc. 1, 49; 2, 19; 2, 51).
Ele ora com as palavras e nos ritmos da oração do seu
povo, na sinagoga de Nazaré e no Templo. Mas a sua
oração brotava duma fonte muito mais secreta, como deixa
pressentir quando diz, aos doze anos: «Eu devo
ocupar-me das coisas do meu Pai» (Lc. 2, 49).
Aqui começa a revelar-se a novidade da oração na
plenitude dos tempos: a oração filial, que o Pai
esperava dos seus filhos, vai finalmente ser vivida pelo
próprio Filho Único na sua humanidade, com e para os
homens.
2600. O Evangelho segundo São Lucas sublinha a ação do
Espírito Santo e o sentido da oração no ministério de
Cristo. Jesus ora antes dos momentos decisivos da
sua missão: antes de o Pai dar testemunho d'Ele aquando
do seu batismo
(Cf. Lc. 3, 21)
e da sua transfiguração
(Cf. Lc. 9, 28)
e antes de cumprir, pela paixão, o desígnio de amor do
Pai
(Cf. Lc. 22, 41-44). Reza também antes dos momentos decisivos
que vão decidir a missão dos seus Apóstolos: antes de
escolher e chamar os Doze
(Cf. Lc. 6, 12),
antes de Pedro O confessar como o «Cristo de Deus»
(Cf. Lc. 9, 18-20) e para que a fé do chefe dos Apóstolos não
desfaleça na tentação
(Cf. Lc. 22, 32).
A oração de Jesus antes dos acontecimentos da salvação
de que o Pai O encarrega, é uma entrega humilde e
confiante da sua vontade a vontade amorosa do Pai.
2601. «Estando um dia Jesus em oração em certo lugar,
quando acabou disse-Lhe um dos seus discípulos: Senhor,
ensina-nos a orar» (Lc. 11, 1). Não é, porventura,
ao contemplar primeiro o seu Mestre em oração, que o
discípulo de Cristo sente o desejo de orar? Pode então
aprendê-la com o mestre da oração. É contemplando
e escutando o Filho que os filhos aprendem a orar ao
Pai.
2602. Jesus retira-se muitas vezes sozinho para a
solidão, no cimo da montanha, preferentemente de
noite, a fim de orar
(Cf. Mc. 1, 35; 6, 46; Lc. 5, 16).
Na sua oração Ele leva os homens, porquanto Ele
próprio assumiu a humanidade na sua encarnação, e
oferece-os ao Pai oferecendo-se a Si mesmo. Ele, o Verbo
que «assumiu a carne», na sua oração humana
partilha tudo quanto vivem os «seus irmãos»
(Cf. Heb. 2, 12);
e compadece-se das suas fraquezas para os livrar delas
(Cf. Heb. 2, 15; 4, 15).
Foi para isso que o Pai O enviou. As suas palavras e as
suas obras aparecem então como a manifestação visível da
sua oração «no segredo».
2603. Os evangelistas retiveram duas orações mais
explícitas de Cristo durante o seu ministério. E ambas
começam por uma ação de graças. Na primeira
(Cf. Mt. 11, 25-27 e Lc. 10, 21-22),
Jesus louva o Pai, reconhece-O e bendi-Lo por ter
escondido os mistérios do Reino aos que se julgavam
sábios e os ter revelado aos «pequeninos» (os
pobres das bem-aventuranças). O seu estremecimento -
«Sim Pai» - revela o íntimo do seu coração, a sua
adesão ao «beneplácito» do Pai, como um eco do
«Fiat» da sua Mãe aquando da sua concepção e como
prelúdio do que Ele próprio dirá ao Pai na sua agonia.
Toda a oração de Jesus está nesta adesão amorosa do seu
coração de homem ao «mistério da vontade» do Pai
(Cf. Ef. 1, 9.).
2604. A segunda oração é referida por São João
(Cf. Jo. 11, 41-42), antes da ressurreição de Lázaro. A ação
de graças precede o acontecimento: «Pai, Eu Te dou
graças por Me teres escutado», o que implica que o
Pai atende sempre o que Lhe pede; e Jesus acrescenta
logo: «Eu bem sabia que Tu Me atendes sempre», o
que implica, por seu turno, que Jesus pede
constantemente. Assim, apoiada na ação de graças, a
oração de Jesus revela-nos como devemos pedir: Antes de
Lhe ser dado o que pede, Jesus adere Aquele que dá e Se
dá nos seus dons. O Doador é mais precioso do que dom
concedido, é o «tesouro», e é n'Ele que está o
coração do Filho; o dom é dado «por acréscimo»
(Cf. Mt. 6, 21.33).
A oração «sacerdotal» de Jesus
(Cf. Jo. 17)
ocupa um lugar único na economia da salvação. Será
meditada no final da primeira Secção. Ela revela, de
fato, a oração sempre atual do nosso Sumo-Sacerdote e,
ao mesmo tempo, contém tudo quanto Ele nos ensina na
nossa oração ao Pai, que será explicada na Segunda
Secção.
2605. Quando chegou a Hora em que cumpriu o desígnio de
amor do Pai, Jesus deixa entrever a profundidade
insondável da sua oração filial, não só antes de
livremente Se entregar («Abbá... não se faça a minha
vontade, mas a tua»: Lc. 23, 42), mas até nas
suas últimas palavras já na cruz, onde orar e dar-se
coincidem: «perdoa-lhes, ó Pai, pois não sabem o que
fazem» (Lc. 23, 34); «em verdade te digo: hoje
estarás comigo no paraíso» (Lc. 23, 43); «Mulher,
eis aí o teu filho» [...] «eis aí a tua mãe»
(Jo. 19, 26-27); «tenho sede» (Jo. 19, 28);
«meu Deus, por que Me abandonaste»? (Mc. 15, 34)
(Cf. Sl. 22, 2);
«tudo está consumado» (Jo. 19, 30); «Pai, nas
tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc. 23, 46), até
ao «grande brado» com que expira, entregando o
espírito
(Cf. Mc. 15, 37; Jo. 19, 30).
2606. Todas as desolações da humanidade de todos os
tempos, escrava do pecado e da morte, todas as súplicas
e intercessões da história da salvação estão reunidas
neste brado do Verbo encarnado. E eis que o Pai as
acolhe e as atende, para além de toda a confiança, ao
ressuscitar o seu Filho. Assim se cumpre e se consuma o
drama da oração na economia da criação e da salvação.
Dele nos dá o Saltério a chave em Cristo. É no «hoje»
da ressurreição que o Pai diz: «Tu és meu Filho, Eu
hoje Te gerei. Pede-Me, e Te darei as nações por herança
e os confins da terra para teu domínio»! (Sl. 2,
7-8)
(Cf. At. 13, 33).
A Epístola aos Hebreus exprime em termos dramáticos como
é que a oração de Jesus realiza a vitória da salvação:
«nos dias da sua vida mortal, Cristo dirigiu preces e
súplicas, com um forte brado e com lágrimas, Aquele que
O podia livrar da morte e, por causa da sua piedade, foi
atendido. Apesar de ser Filho, aprendeu, de quanto
sofreu, o que é obedecer. E quando atingiu a sua
plenitude, tornou-se, para todos aqueles que Lhe
obedecem, causa de salvação eterna» (Heb. 5, 7-9).
JESUS ENSINA A ORAR
2607. Quando ora, Jesus já nos ensina a orar. O caminho
teologal da nossa oração é a sua oração ao Pai. Mas o
Evangelho fornece-nos um ensinamento explícito de Jesus
sobre a oração. Como bom pedagogo, toma conta de nós no
ponto em que nos encontramos e, progressivamente,
conduz-nos até ao Pai. Dirigindo-se às multidões que O
seguem, Jesus parte daquilo que elas já conhecem acerca
da oração segundo a Antiga Aliança e abre-as à novidade
do Reino que chega. Depois, revela-lhes em parábolas
essa novidade. E, por fim, aos seus discípulos que hão
de ser pedagogos da oração na sua Igreja, fala
abertamente do Pai e do Espírito Santo.
2608. Jesus insiste na conversão do coração desde
o sermão da montanha: a reconciliação com o irmão
antes de apresentar a oferta no altar
(Cf. Mt. 5, 23-24);
o amor dos inimigos e a oração pelos perseguidores
(Cf. Mt. 5, 44-45);
orar ao Pai
«no segredo»
(Mt. 6, 6); não se perder em fórmulas palavrosas
(Cf. Mt. 6, 7);
perdoar do fundo do coração na oração
(Cf. Mt. 6, 14-15); a pureza do coração e a busca do Reino
(Cf. Mt. 6, 21.25.33)
Esta conversão está totalmente polarizada no Pai: é
filial.
2609. O coração, assim decidido a converter-se, aprende
a orar na fé. A fé é uma adesão filial a Deus,
para além de tudo quanto sentimos e compreendemos.
Tornou-se possível, porque o Filho bem-amado nos
franqueia o acesso até junto do Pai. Ele pode pedir-nos
que «procuremos» e «batamos à porta»,
porque Ele próprio é a porta e o caminho
(Cf. Mt. 7, 7-11.13-14).
2610. Do mesmo modo que Jesus ora ao Pai e Lhe dá graças
antes de receber os seus dons, assim também nos ensina
esta audácia filial: «tudo o que pedirdes na oração,
acreditai que já o alcançastes» (Mc. 11, 24). Tal é
a força da oração: «tudo é possível a quem crê»
(Mc. 9, 23), com uma fé que não hesita
(Cf. Mt. 21, 21).
Assim como Jesus Se entristece por causa da «falta de
fé» dos seus conterrâneos (Mc. 6, 6) e da «pouca
fé» dos seus discípulos
(Cf. Mt. 8, 26),
também Se enche de admiração perante a «grande fé»
do centurião romano
(Cf. Mt. 8, 10)
e da cananeia
(Cf. Mt. 15, 28).
2611. A oração de fé não consiste somente em dizer
«Senhor, Senhor», mas em preparar o coração para
fazer a vontade do Pai
(Cf. Mt. 7, 21).
Jesus exorta os seus discípulos a levar para a
oração esta solicitude em cooperar com o desígnio de
Deus
(Cf. Mt. 9, 38; Lc. 10, 2; Jo. 4, 34).
2612. Em Jesus, «o Reino de Deus está perto». Ele
apela à conversão e à fé, mas também à vigilância.
Na oração (Mc. 1, 15), o discípulo vela,
atento aquele que é e que vem, na memória da sua
primeira vinda na humildade da carne e na confiança da
sua segunda vinda na glória
(Cf. Mc. 13; Lc. 21, 34-36).
Em comunhão com o Mestre, a oração dos discípulos é um
combate; é vigiando na oração que não se cai na tentação
(Cf. Lc. 22, 40.46).
2613. São Lucas transmite-nos três parábolas
principais sobre a oração.
A primeira, a do «amigo importuno»
(Cf. Lc. 11, 5-13), convida-nos a uma oração persistente:
«batei, e a porta abrir-se-vos-á». Aquele que assim
ora, o Pai Celeste «dará tudo quanto necessitar»
e dará, sobretudo, o Espírito Santo, que encerra todos
os dons.
A segunda, a da «viúva importuna»
(Cf. Lc. 18, 1-8),
está centrada numa das qualidades da oração: é preciso
orar sem se cansar, com a paciência da fé.
«Mas o Filho do Homem, quando voltar, achará porventura
fé sobre a terra»?
A terceira, a do «fariseu e do publicano»
(Cf. Lc. 18, 9-14),
diz respeito à humildade do coração orante.
«Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador».
A Igreja não cessa de fazer sua esta oração: «Kyrie,
eleison»!
2614. Quando Jesus confia abertamente aos discípulos o
mistério da oração ao Pai, desvenda-lhes o que deve ser
a oração deles e a nossa quando Ele tiver voltado para
junto do Pai, na sua humanidade glorificada. O que há de
novo agora é o «pedir em seu nome»
(Cf. Jo. 14, 13).
A fé n'Ele introduz os discípulos no conhecimento do
Pai, porque Jesus é «o caminho, a verdade e a vida»
(Jo. 14, 6). A fé dá os seus frutos no amor: guardar a
sua Palavra, os seus mandamentos, permanecer com Ele no
Pai que n'Ele nos ama ao ponto de permanecer em nós.
Nesta aliança nova, a certeza de sermos atendidos nas
nossas petições baseia-se na oração de Jesus
(Cf. Jo. 14, 13-14).
2615. Mais ainda: o que o Pai nos dá, quando a nossa
oração se une à de Jesus, é «o outro Paráclito, [...]
para ficar convosco para sempre, o Espírito de verdade»
(Jo. 14, 16-17). Esta novidade da oração e das suas
condições aparece ao longo do discurso do adeus
(Cf. Jo. 14, 23-26; 15, 7.16; 16, 13-15.23-27).
No Espírito Santo, a oração cristã é comunhão de amor
com o Pai, não somente por Cristo, mas também n'Ele:
«até agora, não pedistes nada em meu nome. Pedi e
recebereis, para a vossa alegria ser completa» (Jo.
16, 24).
JESUS ATENDE A ORAÇÃO
2616. A oração a Jesus já foi sendo atendida por
Ele durante o seu ministério, mediante os sinais que
antecipam o poder da sua morte e ressurreição: Jesus
atende a oração da fé expressa em palavras (do leproso
(Cf. Mc, 1, 40-41), de Jairo
(Cf. Mc. 5, 36),
da cananeia
(Cf. Mc. 7, 29),
do bom ladrão
(Cf. Lc. 23, 39-43)
ou feita em silêncio (dos que trouxeram o paralítico
(Cf. Mc. 2, 5),
da hemorroíssa que lhe tocou na veste
(Cf. Mc. 5, 28),
as lágrimas e o perfume da pecadora
(Cf. Lc. 7, 37-38). A súplica premente dos cegos: «Filho
de David, tem piedade de nós»! (Mt. 9, 27), ou
«Jesus, filho de David, tem piedade de mim»! (Mc.
10, 47), foi retomada na tradição da Oração a Jesus:
«Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor, tem piedade de
mim, pecador»! Seja a cura das doenças ou o perdão
dos pecados, Jesus responde sempre à oração de quem Lhe
implora com fé: «vai em paz, a tua fé te salvou».
Santo Agostinho resume admiravelmente as três dimensões
da oração de Jesus: «sendo o nosso Sacerdote, ora por
nós; sendo a nossa Cabeça, ora em nós; e sendo o nosso
Deus, a Ele oramos. Reconheçamos, pois, n'Ele a nossa
voz e a voz d'Ele em nós»
(Santo Agostinho, Enarratio in Psalmum 85, 1
CCL39, 1176 (PL 36, 1081); cf. Instrução geral da
Liturgia das Horas, 7: Liturgia Horarum,
editio typica, v. 1 (Typis Polyglottis Vaticanis 1973)
p. 24 [Liturgia das Horas, v. 1 (Gráfica de Coimbra
1983) p. 26]).
A ORAÇÃO DA VIRGEM MARIA
2617. A oração de Maria é-nos revelada na aurora da
plenitude dos tempos. Antes da encarnação do Filho de
Deus e da efusão do Espírito Santo, a sua oração coopera
de um modo único com o desígnio benevolente do Pai,
aquando da Anunciação para a concepção de Cristo
(Cf. Lc. 1, 38)
e aquando do Pentecostes para a formação da Igreja,
corpo de Cristo
(Cf. Lc 1, 14).
Na fé da sua humilde serva, o Dom de Deus encontra o
acolhimento que Ele esperava desde o princípio dos
tempos. Aquela que o Todo-Poderoso fez «cheia de
graça» responde pelo oferecimento de todo o seu ser:
«eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua
palavra». «Faça-se» é a oração cristã: ser
todo para Ele, já que Ele é todo para nós.
2618. O Evangelho revela-nos como é que Maria ora e
intercede na fé: em Caná
(Cf. Jo. 2, 1-12),
a Mãe de Jesus roga a seu Filho pelas necessidades dum
banquete de bodas, sinal dum outro banquete, o das bodas
do Cordeiro que dá o seu corpo e o seu sangue a pedido
da Igreja, sua esposa. E é na hora da Nova Aliança, ao
pé da cruz
(Cf. Jo. 19, 25-27), que Maria é atendida como a Mulher, a
nova Eva, a verdadeira «mãe dos vivos».
2619. É por isso que o cântico de Maria
(Cf. Lc. 1, 46-55)
o Magnificat latino, o Megalynárion
bizantino - é, ao mesmo tempo, o cântico da Mãe de Deus
e o da Igreja, cântico da Filha de Sião e do novo povo
de Deus, cântico de ação de graças pela plenitude de
graças derramadas na economia da salvação, cântico dos
«pobres», cuja esperança se vê satisfeita pelo
cumprimento das promessas feitas aos nossos pais,
«em favor de Abraão e da sua descendência, para sempre».
Resumindo:
2620. No Novo Testamento, o modelo perfeito da oração
é a oração filial de Jesus. Feita muitas vezes na
solidão, no segredo, a oração de Jesus comporta uma
adesão amorosa à vontade do Pai até à cruz e uma
confiança absoluta em que será atendida.
2621. Na sua doutrina, Jesus ensina os discípulos a
orar com um coração purificado, uma fé viva e
perseverante, uma audácia filial. Exorta-os à vigilância
e convida-os a apresentar a Deus os seus pedidos em nome
d'Ele. O próprio Jesus Cristo atende as orações que lhe
são dirigidas.
2622. A oração da Virgem Maria, no seu «Fiat»
e no seu «Magnificat», caracteriza-se pelo
oferecimento generoso de todo o seu ser na fé.
ARTIGO 3
NO TEMPO DA IGREJA
2623. No dia de Pentecostes, o Espírito da promessa foi
derramado sobre os discípulos, «reunidos no mesmo
lugar» (At. 2, 1), enquanto O esperavam,
«todos [...] perseveravam unânimes na oração» (At.
1, 14). O Espírito que ensina a Igreja e lhe recorda
tudo quanto Jesus disse
(Cf. Jo. 14, 26)
vai também formá-la na vida de oração.
2624. Na primeira comunidade de Jerusalém, os crentes
«eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à comunhão
fraterna, à fração do pão e às orações» (At. 2, 42).
Esta sequência é típica da oração da Igreja: fundada
sobre a fé apostólica e autenticada pela caridade,
alimenta-se na Eucaristia.
2625. Estas orações são, em primeiro lugar, as
que os fiéis ouvem e leem nas Escrituras; mas eles
atualizam-nas, em particular as dos salmos, a partir da
sua realização em Cristo
(Cf. Lc. 24, 27.44).
O Espírito Santo, que assim recorda Cristo à sua Igreja
orante, também a conduz para a verdade integral e
suscita formulações novas que exprimirão o insondável
mistério de Cristo operante na vida, sacramentos e
missão da Igreja. Estas formulações desenvolver-se-ão
nas grandes tradições litúrgicas e espirituais. As
formas da oração, tais como as revelam as Escrituras
apostólicas canónicas, continuam a ser normativas da
oração cristã.
I. A bênção e a adoração
2626. A bênção exprime o movimento de fundo da
oração cristã: ela é o encontro de Deus com o homem;
nela se encontram e unem o dom de Deus e o acolhimento
do homem. A oração de bênção é a resposta do homem aos
dons de Deus: uma vez que Deus abençoa, o coração
do homem pode responder bendizendo Aquele que é a
fonte de toda a bênção.
2627. Exprimem este movimento duas formas fundamentais:
umas vezes, a bênção sobe, levada por Cristo no Espírito
Santo, para o Pai (nós O bendizemos por Ele nos ter
abençoado)
(Cf. Ef. 1, 3-14; 2ª Cor. 1, 3-7; 1ª Pe. 1, 3-9);
outras vezes, implora a graça do Espírito Santo que, por
Cristo, desce de junto do Pai (é Ele que nos abençoa)
(Cf. 2ª Cor. 13, 13; Rm. 15, 5-6.13; Ef. 6, 23-24).
2628. A adoração é a primeira atitude do homem
que se reconhece criatura diante do seu Criador. Exalta
a grandeza do Senhor que nos criou
(Cf. Sl. 95, 1-6) e a omnipotência do Salvador que nos
liberta do mal. É a prostração do espírito perante o
«Rei da glória»
(Cf. Sl. 24, 9-10)
e o silêncio respeitoso face ao Deus «sempre maior»
(Santo Agostinho, Enarratio in Psalmum 62, 16:
CCL 39, 804 (PL 36, 758)).
A adoração do Deus três vezes santo e soberanamente
amável enche-nos de humildade e dá segurança às nossas
súplicas.
II. A oração de petição
2629. O vocabulário da oração de súplica é rico de
matizes no Novo Testamento: pedir, reclamar, chamar com
insistência, invocar, bradar, gritar e, até «lutar na
oração»
(Cf. Rm. 15, 30; Cl. 4, 12).
Mas a sua forma mais habitual, porque mais espontânea, é
a petição. É pela oração de petição que traduzimos a
consciência da nossa relação com Deus: enquanto
criaturas, não somos a nossa origem, nem donos das
adversidades, nem somos o nosso fim último; mas também,
sendo pecadores, sabemos, como cristãos, que nos
afastamos do nosso Pai. A petição é já um regresso a
Ele.
2630. O Novo Testamento quase não contém orações de
lamentação, frequentes no Antigo. Doravante, em Cristo
Ressuscitado, a petição da Igreja é sustentada pela
esperança, embora ainda estejamos à espera e tenhamos de
nos converter em cada dia. É de outra profundidade que
brota a petição cristã, aquela a que São Paulo chama
gemido: o da criação em «dores de parto»
(Rm. 8, 22) e também o nosso, «aguardando a
libertação do nosso corpo», porque «foi na
confiança que fomos salvos» (Rm. 8, 23-24); e, por
fim, os «gemidos inefáveis» do próprio Espírito
Santo, que «vem em auxílio da nossa fraqueza, pois
não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como
deve ser» (Rm. 8, 26).
2631. O pedido de perdão é o primeiro
movimento da oração de petição (cf. o publicano: «ó
Deus, tem piedade de mim, que sou pecador» (Lc. 18,
13). É o preliminar duma oração justa e pura. A
humildade confiante repõe-nos na luz da comunhão com o
Pai e com o seu Filho Jesus Cristo, bem como dos homens
uns com os outros
(Cf. 1ª Jo. 1, 7 – 2, 2. 49).
Nestas condições, «seja o que for que Lhe peçamos,
recebê-lo-emos» (1ª Jo. 3, 22). O pedido de perdão é
o preâmbulo da liturgia Eucarística, bem como da oração
pessoal.
2632. A petição cristã está centrada no desejo e na
busca do Reino que há de vir, em conformidade com o
ensinamento de Jesus
(Cf. Mt. 6, 10.33; Lc. 11, 2.13).
Há uma hierarquia nas petições: primeiro, o Reino;
depois, tudo quanto é necessário para o acolher e para
cooperar com a sua vinda. Esta cooperação com a missão
de Cristo e do Espírito Santo, que agora é a da Igreja,
é o objeto da oração da comunidade apostólica
(Cf. At 6, 6: 13, 3).
É a oração de Paulo, o apóstolo por excelência, que nos
revela como a solicitude divina por todas as Igrejas
deve animar a oração cristã
(Cf. Rm. 10, l; Ef. 1, 16-23; Fl. 1, 9-11; Cl. 1, 3-6;
4, 3-4.12).
Pela oração, todo o cristão trabalha pela vinda do
Reino.
2633. Quando se participa assim no amor salvífico de
Deus, compreende-se que qualquer necessidade pode
tornar-se objeto de pedido. Cristo, que tudo assumiu a
fim de tudo resgatar, é glorificado pelos pedidos que
dirigimos ao Pai em seu nome
(Cf. Jo. 14, 13).
É com esta certeza que Tiago
(Cf. Tg. 1, 5-8)
e Paulo nos exortam a orar em todas as ocasiões
(Cf. Ef. 5, 20; Fl. 4, 6-7; Cl. 3, 16-17; 1ª Ts. 5,
17-18).
III. A oração de intercessão
2634. A intercessão é uma oração de petição que nos
conforma de perto com a oração de Jesus. É Ele o único
intercessor junto do Pai em favor de todos os homens, em
particular dos pecadores
(Cf. Rm. 8, 34; 1ª Jo. 2, 1; 1ª Tm 2, 5-8).
Ele «pode salvar de maneira definitiva aqueles que,
por seu intermédio, se aproximam de Deus, uma vez que
está sempre vivo, para interceder por eles» (Heb. 7,
25). O próprio Espírito Santo «intercede por nós
[...] intercede pelos santos, em conformidade com Deus»
(Rm. 8, 26-27).
2635. Interceder, pedir a favor de outrem, é próprio,
desde Abraão, dum coração conforme com a misericórdia de
Deus. No tempo da Igreja, a intercessão cristã participa
na de Cristo: é a expressão da comunhão dos santos. Na
intercessão, aquele que ora não «olha aos seus
próprios interesses, mas aos interesses dos outros»
(Fl. 2, 4), e chega até a rezar pelos que lhe fazem mal
(Cf. Santo Estêvão rezando pelos que o supliciavam, como
Jesus: cf. At. 7, 60; Lc 23, 28.34.).
2636. As primeiras comunidades cristãs viveram
intensamente esta forma de partilha
(Cf. At 12, 5; 20, 36; 21, 5; 2ª Cor. 9, 14).
O apóstolo Paulo fá-las participar deste modo no seu
ministério do Evangelho
(Cf. Ef. 6, 18-20; Cl. 4, 3-4; 1ª Ts. 5, 25)
mas ele próprio também intercede por elas
(Cf. 2ª Ts. 1, 11; Cl. 1, 3; Fl. 1, 3-4).
A intercessão dos cristãos não conhece fronteiras:
«[...] por todos os homens, [...] por todos os que
exercem a autoridade» (1ª Tm. 2, 1), pelos
perseguidores
(Cf. Rm. 12, 14),
pela salvação dos que rejeitam o Evangelho
(Cf. Rm. 10, 1).
IV. A oração de ação de graças
2637. A ação de graças caracteriza a oração da Igreja
que, ao celebrar a Eucaristia, manifesta e cada vez mais
se torna naquilo que é. De fato, pela obra da salvação,
Cristo liberta a criação do pecado e da morte, para de
novo a consagrar e fazer voltar ao Pai, para sua glória.
A ação de graças dos membros do corpo participa na da
sua Cabeça.
2638. Como na oração de petição, qualquer acontecimento
e qualquer necessidade podem transformar-se em oferenda
de ação de graças. As cartas de São Paulo muitas vezes
começam e acabam por uma ação de graças, e nelas o
Senhor Jesus está sempre presente: «daí graças em
todas as circunstâncias, pois é esta a vontade de Deus,
em Cristo Jesus, a vosso respeito» (1ª Ts. 5,
18); «perseverai na oração; sede, por meio dela,
vigilantes em ações de graças» (Cl. 4, 2).
V. A oração de louvor
2639. O louvor é a forma de oração que mais
imediatamente reconhece que Deus é Deus! Canta-O por Si
próprio, glorifica-O, não tanto pelo que Ele faz, mas
sobretudo porque ELE É. Participa da bem-aventurança dos
corações puros que O amam na fé, antes de O verem na
glória. Por ela, o Espírito junta-se ao nosso espírito
para testemunhar que somos filhos de Deus
(Cf. Rm. 8, 16)
e dá testemunho do Filho Único no qual fomos adotados e
pelo qual glorificamos o Pai. O louvor integra as outras
formas de oração e leva-as Aquele que delas é a fonte e
o termo: «o único Deus, o Pai, de quem tudo procede e
para quem nós somos» (1ª Cor. 8, 6).
2640. São Lucas registra muitas vezes no seu Evangelho a
admiração e o louvor perante as maravilhas operadas por
Cristo. Sublinha também os mesmos sentimentos perante as
ações do Espírito Santo que são os Atos dos Apóstolos: a
comunidade de Jerusalém
(Cf. At. 2, 47),
o entrevado curado por Pedro e João
(Cf. At. 3, 9),
a multidão que por tal fato dá glória a Deus
(Cf. At 4, 21),
os pagãos da Pisídia, que, «cheios de alegria,
glorificam a Palavra do Senhor» (At. 13, 48).
2641. «Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos
inspirados; cantai e louvai ao Senhor no vosso coração»
(Ef. 5, 19)
(Cf. Cl. 3, 16).
Tal como os escritores inspirados do Novo Testamento, as
primeiras comunidades cristãs releem o livro dos Salmos,
cantando neles o mistério de Cristo. Na novidade do
Espírito, compõem também hinos e cânticos a partir do
acontecimento inaudito que Deus realizou em seu Filho: a
sua encarnação, a sua morte vitoriosa sobre a morte, a
sua ressurreição e a sua ascensão à direita do Pai
(Cf. Fl. 2, 6-11; Cl. 1, 15-20; Ef. 5, 14; 1ª Tm. 3, 16;
6, 15-16; 2ª Tm. 2, 11-13).
É desta «maravilha» de toda a economia da
salvação que sobe a doxologia, o louvor de Deus
(Cf. Ef. 1, 3-14; 3, 20-21; Rm. 16, 25-27; Jd. 24-25).
2642. A revelação «do que deve acontecer em breve»,
que é o Apocalipse, apoia-se nos cânticos da liturgia
celeste
(Cf. Ap. 4, 8-11; 5, 9-14; 7, 10-12),
mas também na intercessão das «testemunhas» (isto
é, dos mártires)
(Cf. Ap. 6, 10).
Os profetas e os santos, todos os que na terra foram
mortos por causa do testemunho dado por Jesus
(Cf. Ap. 18, 24),
a multidão imensa daqueles que, vindos da grande
tribulação, nos precederam no Reino, cantam o louvor da
glória d'Aquele que está sentado no trono e do Cordeiro
(Cf. Ap. 19, 1-8).
Em comunhão com eles, a Igreja da terra canta também os
mesmos cânticos, na fé e na provação. A fé, na súplica e
na intercessão, espera contra toda a esperança e dá
graças ao Pai das luzes de quem procede todo o dom
perfeito
(Cf. Tg. 1, 17).
Assim, a fé é um puro louvor.
2643. A Eucaristia contém e exprime todas as formas de
oração: é «a oblação pura» de todo o corpo de
Cristo «para glória do seu nome»
(Cf. Ml. 1, 11);
é, segundo as tradições do Oriente e do Ocidente, «o
sacrifício de louvor».
Resumindo:
2644. O Espírito Santo, que ensina a Igreja e lhe
recorda tudo o que Jesus disse, também a educa para a
vida de oração, suscitando expressões que se renovam no
âmbito de formas permanentes: bênção, petição,
intercessão, ação de graças e louvor.
2645. É porque Deus o
abençoa, que o coração do homem pode, retribuindo,
bendizer Aquele que é a fonte de toda a bênção.
2646. A oração de petição tem por objeto o perdão, a
busca do Reino, bem como qualquer necessidade
verdadeira.
2647. A oração de intercessão consiste numa petição
em favor de outrem. Não conhece fronteiras e estende-se
até aos inimigos.
2648. Toda a alegria e todo o sofrimento, todo o
acontecimento e toda a necessidade podem ser matéria da
ação de graças, a qual, participando na de Cristo, deve
encher a vida toda: «dai graças em todas as
circunstâncias» (1ª Ts. 5, 18).
2649. A oração de louvor, totalmente desinteressada,
dirige-se a Deus: canta-O por Si próprio, glorifica-O,
não tanto pelo que Ele faz, mas sobretudo porque ELE É.
A ORAÇÃO CRISTÃ
PRIMEIRA SECÇÃO
A ORAÇÃO NA VIDA CRISTÃ
CAPÍTULO SEGUNDO
A TRADIÇÃO DA ORAÇÃO
2650. A oração não se reduz ao brotar espontâneo dum
impulso interior: para orar, é preciso querer. Tão pouco
basta saber o que a Escritura revela sobre a oração: é
preciso também aprender a rezar. Ora, é através duma
transmissão viva (a Tradição sagrada), que o Espírito
Santo, na «Igreja crente e orante»
(Cf. II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum,
8: AAS 58 (1966) 821),
ensina os filhos de Deus a orar.
2651. A tradição da oração cristã é uma das formas de
crescimento da Tradição da fé, particularmente pela
contemplação e pelo estudo dos crentes, que guardam no
seu coração os acontecimentos e as palavras da economia
da salvação, e pela penetração profunda das realidades
espirituais que eles experimentam
(Cf. II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum,
8: AAS 58 (1966) 821).
ARTIGO 1
NAS FONTES DA ORAÇÃO
2652. O Espírito Santo é a «água viva» que, no
coração orante, «jorra para a vida eterna»
(Cf. Jo. 4, 14).
É Ele quem nos ensina a recolhê-la na própria Fonte:
Jesus Cristo. Ora, há na vida cristã mananciais onde
Cristo nos espera para nos dar a beber o Espírito Santo.
A PALAVRA DE DEUS
2653. A Igreja «exorta com ardor e insistência todos
os fiéis [...] a que aprendam "a sublime ciência de
Jesus Cristo" (Fl. 3, 8) pela leitura frequente
das divinas Escrituras [...]. Lembrem-se, porém, de que
a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de
oração, para que seja possível o diálogo entre Deus e o
homem, porque "a Ele falamos, quando rezamos, a Ele
ouvimos, quando lemos os divinos oráculos"»
(II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum,25:
AAS 58 (1966) 829; cf. Santo Ambrósio, De officiis
ministrorum, 1, 88: ed. N. Testard (Paris 1984) p.
138 (PL 16, 50)).
2654. Os Padres espirituais, parafraseando Mt. 7, 7,
resumem assim as disposições do coração, alimentado pela
Palavra de Deus na oração: «procurai na leitura e
achareis na meditação; batei à porta na oração e ela
abrir-se-vos-á na contemplação»
(Guigo, O Cartuxo, Scala claustralium, 2, 2: PL
184, 476. Entretanto, estas palavras não foram retidas
no texto da edição crítica SC 163, 84; veja-se aí o
aparato crítico).
A LITURGIA DA IGREJA
2655. A missão de Cristo e do Espírito Santo que, na
liturgia sacramental da Igreja anuncia, atualiza e
comunica o mistério da salvação, prossegue no coração de
quem ora. Os Padres espirituais comparam, por vezes, o
coração a um altar. A oração interioriza e assimila a
liturgia, durante e depois da sua celebração. Mesmo
quando vivida «no segredo» (Mt. 6, 6), a oração é
sempre oração da Igreja; é comunhão com a
Santíssima Trindade
(Instrução geral da Liturgia das Horas, 9:
Liturgia Horarum, editio typica, v. 1 (Typis
Polyglottis Vaticanis 1973) p. 25 [Liturgia das Horas,
v. 1 (Gráfica de Coimbra 1983) p. 27]).
AS VIRTUDES TEOLOGAIS
2656. Entra-se na oração como se entra na liturgia: pela
porta estreita da fé. Através dos sinais da sua
presença, é a face do Senhor que nós buscamos e
desejamos, é a sua Palavra que nós queremos escutar e
guardar.
2657. O Espírito Santo, que nos ensina a celebrar a
liturgia na expectativa do regresso de Cristo, educa-nos
para orar na esperança. E vice-versa, a oração da
Igreja e a prece pessoal nutrem em nós a esperança.
Particularmente os salmos, com a sua linguagem concreta
e variada, ensinam-nos a fixar em Deus a nossa
confiança: «Esperei no Senhor com toda a confiança, e
Ele atendeu-me. Ouviu o meu clamor» (Sl. 40, 2).
«Que o Deus da esperança vos encha de toda a alegria e
paz na fé, para que transbordeis de confiança pela força
do Espírito Santo» (Rm. 15, 13).
2658. «A confiança não engana, porque o amor de Deus
foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi dado» (Rm. 5, 5). A oração, formada pela
vida litúrgica, vai haurir tudo no amor com que fomos
amados em Cristo e que nos dá a graça de Lhe
corresponder, amando como Ele amou. O amor é a
fonte da oração; quem bebe dessa fonte atinge os cumes
da oração:
- «eu Vos amo, ó meu Deus, e o meu único desejo é
amar-Vos até ao último suspiro da minha vida. Amo-Vos, ó
meu Deus infinitamente amável, e antes quero morrer a
amar-Vos do que viver sem Vos amar. Amo-Vos, Senhor, e a
única graça que Vos peço é a de Vos amar eternamente
[...] Meu Deus: se a minha língua não pode dizer a todo
o momento que Vos amo, quero que o meu coração o repita
tantas vezes quantas eu respiro»
(São João Maria Baptista Vianney, Oração, In B.
Nodet, Le Cure d'Ars. Sa pensée-son coeur (Le Puy
1966) p. 45).
«HOJE»
2659. Aprendemos a orar em certos momentos, escutando a
Palavra do Senhor e participando no seu mistério pascal.
Mas a cada momento, nos acontecimentos de cada dia,
o seu Espírito é-nos oferecido para fazer brotar a
oração. O ensinamento de Jesus sobre a oração ao nosso
Pai está na mesma linha que o ensino sobre a providência
(Cf. Mt. 6, 11.34):
o tempo está nas mãos do Pai; é no presente que nós O
encontramos; não ontem nem amanhã, mas hoje: - «quem
dera ouvísseis hoje a sua voz; não endureçais os vossos
corações» (Sl. 95, 7-8).
2660. Orar nos acontecimentos de cada dia e de cada
instante é um dos segredos do Reino, revelados aos
«pequeninos», aos servos de Cristo, aos pobres das
bem-aventuranças. É justo e bom orar para que a vinda do
Reino da justiça e da paz influencie a marcha da
história; mas também é importante levedar pela oração a
massa das humildes situações quotidianas. Todas as
formas de oração podem ser esse fermento a que o Senhor
compara o Reino
(Cf. Lc. 13, 20-21).
Resumindo:
2661. É por meio duma transmissão viva, pela
Tradição, que, na Igreja, o Espírito Santo ensina os
filhos de Deus a orar.
2662. A Palavra de Deus, a liturgia da Igreja, as
virtudes da fé, da esperança e da caridade são fontes da
oração.
ARTIGO 2
O CAMINHO DA ORAÇÃO
2663. Na tradição viva da oração, cada Igreja propõe aos
seus fiéis, segundo o contexto histórico, social e
cultural, a linguagem da sua oração: palavras, melodias,
gestos e iconografia. Compete ao Magistério
(Cf. II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum,
10: AAS 58 (1966) 822)
ajuizar sobre a fidelidade destes caminhos de oração à
Tradição da fé apostólica. E aos pastores e catequistas
incumbe a tarefa de explicar o seu sentido, sempre com
referência a Jesus Cristo.
A ORAÇÃO AO PAI
2664. Não há outro caminho para a oração cristã senão
Cristo. Seja comunitária ou pessoal, seja vocal ou
interior, a nossa oração só tem acesso ao Pai se
rezarmos «em nome» de Jesus. A santa humanidade
de Jesus é, pois, o caminho pelo qual o Espírito Santo
nos ensina a orar a Deus nosso Pai.
A ORAÇÃO A JESUS
2665. A oração da Igreja, alimentada pela Palavra de
Deus e pela celebração da liturgia, ensina-nos a orar ao
Senhor Jesus. Mesmo sendo dirigida sobretudo ao Pai, ela
inclui, em todas as tradições litúrgicas, formas de
oração dirigidas a Cristo
(Cf. Ex. 3, 14; 33, 19-23).
Certos salmos, segundo a sua atualização na oração da
Igreja, e o Novo Testamento, colocam nos nossos lábios e
gravam nos nossos corações as invocações desta oração a
Cristo: Filho de Deus, Verbo de Deus, Senhor, Salvador,
Cordeiro de Deus, Rei, Filho muito amado, Filho da
Virgem, Bom Pastor, nossa Vida, nossa Luz, nossa
Esperança, nossa Ressurreição, Amigo dos homens...
2666. Mas o nome que tudo encerra é o que o Filho de
Deus recebe na sua encarnação: JESUS. O nome divino é
indizível para lábios humanos, mas, ao assumir a nossa
humanidade, o Verbo de Deus comunica-no-lo e nós podemos
invocá-lo: «Jesus», «YHWH salva»
(Cf. Mt. 1, 21).
O nome de Jesus contém tudo: Deus e o homem e toda a
economia da criação e da salvação. Rezar «Jesus»
é invocá-Lo, chamá-Lo a nós. O seu nome é o único que
contém a presença que significa. Jesus é o Ressuscitado,
e todo aquele que invocar o seu nome, acolhe o Filho de
Deus que o amou e por ele Se entregou
(Cf. Rm. 10, 13; At. 2, 21; 3, 15-16; Gl. 2, 20).
2667. Esta invocação de fé tão simples foi desenvolvida
na tradição da oração sob as mais variadas formas, tanto
no Oriente como no Ocidente. A formulação mais habitual,
transmitida pelos espirituais do Sinai, da Síria e de
Athos, é a invocação: «Jesus, Cristo, Filho de Deus,
Senhor, tende piedade de nós, pecadores»! Ela
conjuga o hino cristológico de Fl. 2, 6-11 com a
invocação do publicano e dos mendigos da luz
(Cf. Lc. 18, 13; Mc. 10, 46-52).
Por ela, o coração sintoniza com a miséria dos homens e
com a misericórdia do seu Salvador.
2668. A invocação do santo Nome de Jesus é o
caminho mais simples da oração contínua. Muitas vezes
repetida por um coração humildemente atento, não se
dispersa num «mar de palavras» (Mt. 6, 7),
mas «guarda a Palavra e produz fruto pela constância»
(Cf. Lc. 8, 15).
E é possível «em todo o tempo», porque não
constitui uma ocupação a par de outra, mas é a ocupação
única, a de amar a Deus, que anima e transfigura toda a
ação em Cristo Jesus.
2669. A oração da Igreja venera e honra o
Coração de Jesus, tal como invoca o seu santíssimo
Nome. Adora o Verbo encarnado e o seu Coração que, por
amor dos homens, se deixou trespassar pelos nossos
pecados. A oração cristã gosta de percorrer o caminho
da cruz (Via-Sacra) no seguimento do Salvador. As
estações, do Pretório ao Gólgota e ao túmulo, assinalam
o caminho de Jesus que, pela sua santa cruz, remiu o
mundo.
«VINDE, ESPÍRITO SANTO»
2670. «Ninguém pode dizer "Jesus é o Senhor", a não
ser pela ação do Espírito Santo» (1ª Cor. 12,
3). Todas as vezes que começamos a orar a Jesus, é o
Espírito Santo que, pela sua graça preveniente, nos
atrai para o caminho da oração. Uma vez que Ele nos
ensina a orar lembrando-nos Cristo, como orar-Lhe a Ele
próprio? A Igreja convida-nos, pois, a implorar cada dia
o Espírito Santo, especialmente no princípio e no fim de
qualquer ato importante.
- «se o Espírito Santo não deve ser adorado, como é que
Ele me diviniza pelo Batismo? E se deve ser adorado, não
há de ser objeto dum culto particular»?
(São Gregório de Nazianzo, Oratio 31 (theologica
5), 28: SC 250, 332 (PG 36, 165)).
2671. A forma tradicional de pedir o Espírito é invocar
o Pai, por Cristo, nosso Senhor, para que nos dê o
Espírito Consolador
(Cf. Lc. 11, 13). Jesus insiste nesta petição em seu nome
no próprio momento em que promete o dom do Espírito de
verdade
(Cf. Jo. 14, 17; 15, 26; 16, 13).
Mas também é tradicional a oração mais simples e mais
direta: «vinde, Espírito Santo». Cada tradição
litúrgica desenvolveu-a em antífonas e hinos:
- «vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos
Vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor»
(Solenidade de Pentecostes, Antífona do
«Magnificat» nas I Vésperas: Liturgia Horarum,
editio typica, v. 2 (Typis Polyglottis Vaticanis 1973)
p. 798 [Liturgia das Horas, v. 2 (Gráfica de
Coimbra 1983) p. 930]; cf. Solenidade de Pentecostes,
Sequência na Missa do dia: Lectionarium, v. 1,
editio typica (Typis Polyglottis Vaticanis 1970) p.
855-856 [Leccionário Dominical. Ano A (Coimbra,
Gráfica de Coimbra - Conferência Episcopal Portuguesa,
1993) p. 238]).
«Rei celeste, Espírito consolador, Espírito da verdade,
presente em toda a parte e tudo enchendo, tesouro de
todo o bem e fonte da vida, vem, habita em nós,
purifica-nos e salva-nos, Tu que és Bom»!
(Ofício das Horas Bizantino, Vésperas do dia de
Pentecostes, Sticherum 4: Pentêkostárion
(Rome 1884) p. 394).
2672. O Espírito Santo, cuja unção impregna todo o nosso
ser, é o mestre interior da oração cristã. É o artífice
da tradição viva da oração. Há, é certo, tantos caminhos
na oração como orantes; mas é o mesmo Espírito que age
em todos e com todos. É na comunhão do Espírito Santo
que a oração cristã é oração na Igreja.
EM COMUNHÃO COM A SANTA MÃE DE DEUS
2673. Na oração, o Espírito Santo une-nos à pessoa do
Filho Único, na sua humanidade glorificada. É por ela e
nela que a nossa oração filial comunga, na Igreja, com a
Mãe de Jesus
(Cf. At. 1, 14).
2674. Desde o consentimento prestado na fé à Anunciação
e mantido sem hesitação ao pé da cruz, a maternidade de
Maria estende-se aos irmãos e irmãs do seu Filho ainda
peregrinos e que caminham entre perigos e angústias
(Cf. II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Lumen
Gentium, 62: AAS 57 (1965) 63).
Jesus, o único mediador, é o caminho da nossa oração;
Maria, sua Mãe e nossa Mãe, é pura transparência dele:
Ela «mostra o caminho» («Hodêghêtria»), é
«o sinal» do caminho, segundo a iconografia
tradicional no Oriente e no Ocidente.
2675. Foi a partir desta singular cooperação de
Maria com a ação do Espírito Santo que as Igrejas
cultivaram a oração à Santa Mãe de Deus, centrando-a na
pessoa de Cristo manifestada nos seus mistérios. Nos
inúmeros hinos e antífonas em que esta oração se
exprime, alternam habitualmente dois movimentos: um
«magnifica» o Senhor pelas «maravilhas» que
fez pela sua humilde serva e, através d'Ela, por todos
os seres humanos
(Cf. Lc. 1, 46-55); o outro confia à Mãe de Jesus as súplicas
e louvores dos filhos de Deus, pois Ela agora conhece a
humanidade que n'Ela foi desposada pelo Filho de Deus.
2676. Este duplo movimento de oração a Maria encontrou
uma expressão privilegiada na oração da «Ave-Maria»:
- «Ave, Maria (alegrai-vos, Maria)».
A saudação do anjo Gabriel abre esta oração. É o
próprio Deus que, por intermédio do seu anjo, saúda
Maria. A nossa oração ousa retomar a saudação a Maria
com o olhar que Deus pôs na sua humilde serva
(Cf. Lc 1, 48. s),
alegrando-nos com a alegria que Ele n'Ela encontra
(Cf. Sf. 3, 17).
«Cheia de graça, o Senhor é convosco».
As duas palavras da saudação do anjo esclarecem-se
mutuamente. Maria é cheia de graça, porque o Senhor está
com Ela. A graça de que Ela é cumulada é a presença
d'Aquele que é a fonte de toda a graça. «Solta brados
de alegria [...] filha de Jerusalém [...]; o Senhor teu
Deus está no meio de ti» (Sf. 3, 14. 17a).
Maria, em quem o próprio Senhor vem habitar, é em pessoa
a filha de Sião, a arca da aliança, o lugar onde reside
a glória do Senhor: é «a morada de Deus com os
homens» (Ap. 21, 3). «Cheia de graça»,
Ela dá-se toda Aquele que n'Ela vem habitar e que Ela
vai dar ao mundo.
«Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto
do vosso ventre, Jesus».
Depois da saudação do anjo, fazemos nossa a de Isabel.
«Cheia [...] do Espírito Santo» (Lc. 1, 41),
Isabel é a primeira, na longa sequência das gerações, a
declarar Maria bem-aventurada
(Cf. Lc. 1, 48):
«Feliz d'Aquela que acreditou...» (Lc. 1, 45);
Maria é «bendita entre as mulheres», porque
acreditou no cumprimento da Palavra do Senhor. Abraão,
pela sua fé, tornou-se uma bênção «para todas as
nações da terra» (Gn. 12, 3). Pela sua fé, Maria
tornou-se a mãe dos crentes, graças a quem todas as
nações da terra recebem Aquele que é a própria bênção de
Deus: Jesus, «fruto bendito do vosso ventre».
2677. «Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós...».
Com Isabel, também nós ficamos maravilhados: «e
de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu
Senhor»? (Lc. 1, 43). Porque nos dá Jesus, seu
Filho, Maria é Mãe de Deus e nossa Mãe; podemos
confiar-lhe todas as nossas preocupações e pedidos: Ela
ora por nós como orou por si própria: «faça-se em Mim
segundo a tua palavra» (Lc. 1, 38). Confiando-nos à
sua oração, abandonamo-nos com Ela à vontade de Deus:
«seja feita a vossa vontade».
«Rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa
morte».
Pedindo a Maria que rogue por nós, reconhecemo-nos
pobres pecadores e recorremos à «Mãe de misericórdia»,
à «Santíssima». Confiamo-nos a Ela «agora»,
no hoje das nossas vidas. E a nossa confiança alarga-se
para lhe confiar, desde agora, «a hora da nossa
morte». Que Ela esteja então presente como na morte
do seu Filho na cruz e que, na hora do nosso passamento,
Ela nos acolha como nossa Mãe
(Cf. Jo. 19, 27),
para nos levar ao seu Filho Jesus, no Paraíso.
2678. A piedade medieval do Ocidente propagou a oração
do rosário como substituto popular da Liturgia das
Horas. No Oriente, a forma litânica do akáthistos
e da paráclêsis ficou mais próxima do ofício
coral nas Igrejas bizantinas, ao passo que as tradições
arménia, copta e siríaca preferiram os hinos e cânticos
populares à Mãe de Deus. Mas, na Ave-Maria, nas
theotokía, nos hinos de Santo Efrém ou de São
Gregório de Narek, a tradição da oração é
fundamentalmente a mesma.
2679. Maria é a orante perfeita, figura da Igreja.
Quando Lhe oramos, aderimos com Ela ao desígnio do Pai,
que envia o seu Filho para salvar todos os homens. Como
o discípulo amado, nós acolhemos em nossa casa
(Cf. Jo. 19, 27)
a Mãe de Jesus que se tornou Mãe de todos os viventes.
Podemos orar com Ela e orar-Lhe a Ela. A oração da
Igreja é como que sustentada pela oração de Maria.
Está-lhe unida na esperança
(Cf. II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Lumen
Gentium, 68-69: AAS 57 (1965) 66-67).
Resumindo:
2680. A oração é principalmente dirigida ao Pai.
Igualmente se dirige a Jesus, nomeadamente pela
invocação do seu santo Nome: «Jesus Cristo, Filho de
Deus, Senhor, tende piedade de nós, pecadores»!
2681. «Ninguém pode dizer: "Jesus é o Senhor", a não
ser pela ação do Espírito Santo» (1ª Cor. 12, 3).
A Igreja convida-nos a invocar o Espírito Santo como
mestre interior da oração cristã.
2682. Em virtude da sua singular cooperação com a
ação do Espírito Santo, a Igreja gosta de orar em
comunhão com a Virgem Maria, para enaltecer com Ela as
grandes coisas que Deus n'Ela realizou e para Lhe
confiar súplicas e louvores.
ARTIGO 3
GUIAS PARA A ORAÇÃO
UMA NUVEM DE TESTEMUNHAS
2683. As testemunhas que nos precederam no Reino
(Cf. Heb. 12, 1), especialmente aquelas que a Igreja
reconhece como «santos», participam na tradição
viva da oração pelo exemplo da sua vida, pela
transmissão dos seus escritos e pela sua oração atual.
Elas contemplam a Deus, louvam-no e não cessam de tomar
a seu cuidado os que deixaram na terra. Tendo entrado
«na alegria» do seu Senhor, foram «estabelecidas
à frente de muita coisa»
(Cf. Mt. 25, 21).
A sua intercessão é o mais alto serviço que prestam ao
desígnio de Deus. Podemos e devemos pedir-lhes que
intercedam por nós e por todo o mundo.
2684. Na comunhão dos santos desenvolveram-se, ao longo
da história das Igrejas diversas espiritualidades. O
carisma pessoal duma testemunha do amor de Deus
pelos homens pode ter sido transmitido, como o espírito
de Elias o foi a Eliseu
(Cf. 2º Rs. 2, 9)
e a João Batista
(Cf. Lc. 1, 17),
para que haja discípulos que partilhem desse espírito
(Cf. II Concílio do Vaticano, Decr. Perfectae
caritatis, 2: AAS 58 (1966) 703).
Uma espiritualidade está também na confluência doutras
correntes, litúrgicas e teológicas, e testemunha a
inculturação da fé num determinado meio humano e na
respectiva história. As espiritualidades cristãs
participam na tradição viva da oração e são guias
indispensáveis para os fiéis. Refletem, na sua rica
diversidade, a pura e única luz do Espírito Santo.
- «o Espírito é verdadeiramente o lugar dos santos. E o
santo é, para o Espírito, um lugar próprio, pois se
oferece para habitar com Deus e é chamado seu templo»
(São Basílio Magno, De Spiritu Sancto, 26, 62: SC
17bis, 472 (PG 32, 184)).
SERVOS DA ORAÇÃO
2685. A família cristã é o primeiro lugar da
educação para a oração. Fundada no sacramento do
Matrimónio, é «a igreja doméstica» na qual os
filhos de Deus aprendem a orar «em igreja» e a
perseverar na oração. Particularmente para os filhos
pequenos, a oração familiar quotidiana é o primeiro
testemunho da memória viva da Igreja pacientemente
despertada pelo Espírito Santo.
2686. Os ministros ordenados são também
responsáveis pela formação na oração dos seus irmãos e
irmãs em Cristo. Servos do Bom Pastor, são ordenados
para guiar o povo de Deus até às fontes vivas da oração:
a Palavra de Deus, a Liturgia, a vida teologal, o
«hoje» de Deus nas situações concretas
(Cf. II Concílio do Vaticano, Decr. Presbyterorum
ordinis, 4-6: AAS 58 (1966) 995-1001).
2687. Muitos religiosos têm consagrado toda a sua
vida à oração. Depois dos anacoretas do deserto do
Egito, eremitas, monges e monjas têm dedicado o seu
tempo ao louvor de Deus e à intercessão pelo seu povo. A
vida consagrada não se mantém nem se propaga sem a
oração; é uma das fontes vivas da contemplação e da vida
espiritual na Igreja.
2688. A catequese das crianças, dos jovens e dos
adultos visa a que a Palavra de Deus seja meditada na
oração pessoal, atualizada na oração litúrgica e
interiorizada em todo o tempo, para que dê fruto numa
vida nova. A catequese é também o momento em que se pode
purificar e educar a piedade popular
(Cf. João Paulo II, Ex. Ap. Catechesi tradendae,
54: AAS 71 (1979) 1321-1322).
A memorização das orações fundamentais oferece um
suporte indispensável à vida de oração, mas é importante
que se faça saborear o seu sentido
(Cf. João Paulo II, Ex. Ap. Catechesi tradendae,
55: AAS 71 (1979) 1322-1323).
2689. Grupos de oração e até «escolas de
oração» são hoje um dos sinais e um dos estímulos da
renovação da oração na Igreja, na condição de irem beber
às fontes autênticas da oração cristã. A preocupação com
a comunhão é sinal da verdadeira oração na Igreja.
2690. O Espírito Santo concede a certos fiéis dons de
sabedoria, de fé e de discernimento, em vista deste bem
comum que é a oração (direção espiritual).
Aqueles e aquelas que de tais dons são dotados, são
verdadeiros ministros da tradição viva da oração:
- é por isso que a alma que quer progredir na perfeição
deve, segundo o conselho de São João da Cruz, «olhar
em que mãos se põe, porque, qual o mestre, tal será o
discípulo, e tal pai, tal filho». E ainda: o guia,
«além de sábio e discreto, é mister que seja
experimentado» [...]. Se o guia espiritual «não
tem experiência do que é puro e verdadeiro espírito, não
atinará a encaminhar nele, quando Deus lhe dá, nem ainda
o poderia entender»
(São João da Cruz, Llama de amor viva, redactio
segunda, stropha 3, declaratio 30: Biblioteca Mística
Carmelitana, v. 13 (Burgos 1931) p. 171. [São João
da Cruz, Chama viva de amor, III 30: Obras
Completas (Paço de Arcos, Edições do Carmelo 1986)
p. 909]).
LUGARES FAVORÁVEIS À ORAÇÃO
2691. A igreja, casa de Deus, é o lugar próprio da
oração litúrgica para a comunidade paroquial. É também o
lugar
privilegiado para a adoração da presença real de Cristo
no Santíssimo Sacramento. A escolha dum lugar favorável
não é indiferente para a verdade da oração:
- para a oração pessoal, pode servir um «recanto de
oração», com a Sagrada Escritura e ícones (imagens)
para aí se estar «no segredo» diante do Pai
(Cf. Mt. 6, 6).
Numa família cristã, este género de pequeno oratório
favorece a oração em comum;
- nas regiões onde existem mosteiros, tais comunidades
estão vocacionadas para favorecer a participação dos
fiéis na Liturgia das Horas e permitir a solidão
necessária para uma oração pessoal mais intensa
(Cf. II Concílio do Vaticano, Decr. Perfectae
caritatis, 7: AAS 58 (1966) 705);
- as peregrinações evocam a nossa marcha na terra para o
céu. São tradicionalmente tempos fortes duma oração
renovada. Os santuários são, para os peregrinos à
procura das suas fontes vivas, lugares excepcionais para
viver «em Igreja» as formas da oração cristã.
Resumindo:
2692. Na sua oração, a Igreja peregrina associa-se à
dos santos, cuja intercessão solicita.
2693. As diferentes espiritualidades cristãs
participam na tradição viva da oração e são guias
preciosos da vida espiritual.
2694. A família cristã é o primeiro lugar da educação
para a oração.
2695. Os ministros ordenados, a vida consagrada, a
catequese, os grupos de oração, a «direção espiritual»
prestam, na Igreja, ajuda d oração.
2696. Os lugares mais favoráveis para a oração são: o
oratório pessoal ou familiar, os mosteiros, os
santuários de peregrinação e, sobretudo, a igreja, que é
o lugar próprio da oração litúrgica para a comunidade
paroquial e o lugar privilegiado da adoração
eucarística.
A ORAÇÃO CRISTÃ
PRIMEIRA SECÇÃO
A ORAÇÃO NA VIDA CRISTÃ
CAPÍTULO TERCEIRO
A VIDA DE ORAÇÃO
2697. A oração é a vida do coração novo. Deve animar-nos
a todo o momento. Mas acontece que nos esquecemos
d'Aquele que é a nossa vida e o nosso tudo. É por isso
que os Padres espirituais, na sequência do Deuteronómio
e dos profetas, insistem na oração como «lembrança de
Deus», frequente despertador da «memória do
coração». «Devemos lembrar-nos de Deus com mais
frequência do que respiramos»
(São Gregório Nazianzo, Oratio 27 (theologica 1),
4: SC 250, 78 (PG 36, 16)).
Mas não se pode orar «em todo o tempo», se não se
orar em certos
momentos,
voluntariamente: são os tempos fortes da oração cristã,
em intensidade e duração.
2698. A Tradição da Igreja propõe aos fiéis ritmos de
oração destinados a alimentar a oração contínua. Alguns
são quotidianos: a oração da manhã e da noite, antes e
depois das refeições, a Liturgia das Horas. O Domingo,
centrado na Eucaristia, é santificado principalmente
pela oração. O ciclo do ano litúrgico e as suas grandes
festas constituem os ritmos fundamentais da vida de
oração dos cristãos.
2699. O Senhor conduz cada pessoa pelos caminhos e da
maneira que lhe apraz. Por seu turno, cada fiel
responde-Lhe conforme a determinação do seu coração e as
expressões pessoais da sua oração. No entanto, a
tradição cristã conservou três expressões principais da
vida de oração: a oração vocal, a meditação e a
contemplação. Têm um traço fundamental comum: o
recolhimento do coração. Esta atenção em guardar a
Palavra e permanecer na presença de Deus faz destas três
expressões tempos fortes da vida de oração.
ARTIGO 1
AS EXPRESSÕES DA ORAÇÃO
I. A oração vocal
2700. Pela sua Palavra, Deus fala ao homem. É nas
palavras, mentais ou vocais, que a nossa oração toma
corpo. Mas o mais importante é a presença do coração
Àquele a Quem falamos na oração. «Que a nossa oração
seja atendida não depende da quantidade de palavras, mas
do fervor das nossas almas»
(São João Crisóstomo, De Anna, sermo 2, 2: PG 54,
646).
2701. A oração vocal é um elemento indispensável da vida
cristã. Aos discípulos, atraídos pela oração silenciosa
do seu mestre, este ensina-lhes uma oração vocal: o
«Pai-nosso». Jesus não rezou apenas as orações
litúrgicas da sinagoga: os evangelhos mostram-no-Lo a
elevar a voz para exprimir a sua oração pessoal, desde a
bênção exultante do Pai
(Cf. Mt. 11, 25-26)
até à desolação do Getsemani
(Cf. Mc. 14, 36).
2702. A necessidade de associar os sentidos à oração
interior corresponde a uma exigência da natureza humana.
Nós somos corpo e espírito e experimentamos a
necessidade de traduzir exteriormente os nossos
sentimentos. Devemos rezar com todo o nosso ser para dar
à nossa súplica a maior força possível.
2703. Esta necessidade corresponde também a uma
exigência divina. Deus procura quem O adore em espírito
e verdade e, por conseguinte, uma oração que suba viva
das profundezas da alma. Mas também quer a expressão
exterior que associe o corpo à oração interior, porque
ela lhe presta a homenagem perfeita de tudo a quanto Ele
tem direito.
2704. Porque exterior e tão plenamente humana, a oração
vocal é, por excelência, a oração das multidões. Mas até
a oração mais interior não pode prescindir da oração
vocal. A oração torna-se interior na medida em que
tomamos consciência d'Aquele «a Quem falamos»
(Santa Teresa de Jesus, Camino de perfección, 25:
Biblioteca Mística Carmelitana, v. 3 (Burgos
1916) p. 122. [Cf. Santa Teresa de Jesus, Caminho de
perfeição, 25: Obras Completas (Paço de
Arcos, Edições Carmelo 1994) p. 494]).
Então, a oração vocal torna-se uma primeira forma da
contemplação.
II. A meditação
2705. A meditação é sobretudo uma busca. O espírito
procura compreender o porquê e o como da vida cristã,
para aderir e corresponder ao que o Senhor lhe pede.
Exige uma atenção difícil de disciplinar. Habitualmente,
recorre-se à ajuda dum livro e os cristãos não têm falta
deles: a Sagrada Escritura, em especial o Evangelho, os
santos ícones (as imagens), os textos litúrgicos do dia
ou do tempo, os escritos dos Padres espirituais, as
obras de espiritualidade, o grande livro da criação e o
da história, a página do «hoje» de Deus.
2706. Meditar no que se lê leva a assimilá-lo,
confrontando-o consigo mesmo. Abre-se aqui um outro
livro: o da vida. Passa-se dos pensamentos à realidade.
Segundo a medida da humildade e da fé, descobrem-se nela
os movimentos que agitam o coração e é possível
discerni-los. Trata-se de praticar a verdade para chegar
à luz: «Senhor, que quereis que eu faça»?
2707. Os métodos de meditação são tão diversos como os
mestres espirituais. Um cristão deve querer meditar com
regularidade; doutro modo, torna-se semelhante aos três
primeiros terrenos da parábola do semeador
(Cf. Mc. 4, 4-7. 15-19).
Mas um método não passa de um guia; o importante é
avançar, com o Espírito Santo, no caminho único da
oração: Cristo Jesus.
2708. A meditação põe em ação o pensamento, a
imaginação, a emoção e o desejo. Esta mobilização é
necessária para aprofundar as convicções da fé, suscitar
a conversão do coração e fortalecer a vontade de seguir
a Cristo. A oração cristã dedica-se, de preferência, a
meditar nos «mistérios de Cristo», como na
«lectio divina» ou no rosário. Esta forma de
reflexão orante é de grande valor, mas a oração cristã
deve ir mais longe: até ao conhecimento amoroso do
Senhor Jesus, até à união com Ele.
III. A contemplação
2709. O que é a contemplação? Responde Santa Teresa:
«outra coisa não é, a meu parecer, oração mental, senão
tratar de amizade - estando muitas vezes tratando a sós
- com Quem sabemos que nos ama»
(Santa Teresa de Jesus, Libro de la vida, 8:
Biblioteca Mística Carmelitana, v. 1 (Burgos 1915) p.
57. [Cf. Santa Teresa de Jesus, Livro da vida, 8:
Obras Completas (Paço de Arcos, Edições Carmelo
1994) p. 56]).
A contemplação procura «aquele que o meu coração ama»
(Ct. 1, 7)
(Cf. Ct. 3, 1-4),
que é Jesus, e n'Ele o Pai. Ele é procurado, porque
desejá-Lo é sempre o princípio do amor, e é procurado na
fé pura, esta fé que nos faz nascer d'Ele e viver n'Ele.
Nesta modalidade de oração pode, ainda, meditar-se;
todavia, o olhar vai todo para o Senhor.
2710. A escolha do tempo e duração da contemplação
depende duma vontade determinada, reveladora dos
segredos do coração. Não se faz contemplação quando se
tem tempo; ao invés, arranja-se tempo para estar com o
Senhor, com a firme determinação de não lhe retirar
durante o caminho, sejam quais forem as provações e a
aridez do encontro. Não se pode meditar sempre; mas
pode-se entrar sempre em contemplação, independentemente
das condições de saúde, trabalho ou afetividade. O
coração é o lugar da busca e do encontro, na pobreza e
na fé.
2711. A entrada na contemplação é análoga à da
liturgia eucarística: «reunir» o coração,
recolher todo o nosso ser sob a moção do Espírito Santo,
habitar na casa do Senhor que nós somos, despertar a fé
para entrar na presença d'Aquele que nos espera, fazer
cair as nossas máscaras e voltar o nosso coração para o
Senhor que nos ama, de modo a entregarmo-nos a Ele como
uma oferenda a purificar e transformar.
2712. A contemplação é a oração do filho de Deus, do
pecador perdoado que consente em acolher o amor com que
é amado e ao qual quer corresponder amando ainda mais
(Cf. Lc. 7, 36-50; 19, 1-10).
Mas ele sabe que o seu amor de correspondência é o que o
Espírito Santo derrama no seu coração, porque tudo é
graça da parte de Deus. A contemplação é a entrega
humilde e pobre à vontade amorosa do Pai, em união cada
vez mais profunda com o seu Filho muito amado.
2713. Assim, a contemplação é a expressão mais simples
do mistério da oração. É um dom, uma graça; só
pode ser acolhida na humildade e na pobreza. É uma
relação de aliança estabelecida por Deus no fundo
do nosso ser
(Cf. Jr. 31, 33).
A contemplação é comunhão: nela, a Santíssima
Trindade conforma o homem, imagem de Deus, «à sua
semelhança».
2714. A contemplação é, também, por excelência, o
tempo forte da oração. Nela, o Pai enche-nos de
força, pelo Espírito Santo, para que se fortaleça em nós
o homem interior, Cristo habite nos nossos corações pela
fé e nós sejamos radicados e alicerçados no amor
(Cf. Ef. 3, 16-17).
2715. A contemplação é o olhar da fé, fixado em
Jesus. «Eu olho para Ele e Ele olha para mim» -
dizia, no tempo do seu santo Cura, um camponês d'Ars em
oração diante do Sacrário
(Cf. F. Trochu, Le Curé d'Ars Saint Jean-Marie
Vianney (Lyon-Paris 1927) p. 223-224).
Esta atenção a Ele é renúncia ao «eu». O seu
olhar purifica o coração. A luz do olhar de Jesus
ilumina os olhos do nosso coração; ensina-nos a ver tudo
à luz da sua verdade e da sua compaixão para com todos
os homens. A contemplação dirige também o seu olhar para
os mistérios da vida de Cristo. E assim aprende «o
conhecimento íntimo do Senhor» para mais O amar e
seguir
(Cf. Santo Inácio de Loyola, Exercitia spiritualia,
104: MHSI 100, 224).
2716. A contemplação é escuta da Palavra de Deus.
Longe de ser passiva, esta escuta é obediência da fé,
acolhimento incondicional do servo e adesão amorosa do
filho. Participa do «sim» do Filho que se fez
Servo e do «faça-se» da sua humilde serva.
2717. A contemplação é silêncio, este «símbolo
do mundo que há de vir»
(Santo Isaac de Nínive, Tractatus mystici, 66:
ed. A. J. Wensinck (Amsterdam 1923) p. 315; ed. P.
Bedjan (Parisiis-Lipsiae 1909) p. 470)
ou «linguagem calada do amor»
(São João da Cruz, Carta, 6: Biblioteca Mística
carmelitana, v. 13 (Burgos 1931) p. 262.[Cf. São
João da Cruz, Carta Sexta: Obras Completas (Paço
de Arcos, Edições Carmelo 1986) p. 967]).
Na contemplação, as palavras não são discursos, mas
acendalhas que alimentam o fogo do amor. É neste
silêncio, insuportável para o homem «exterior»,
que o Pai nos diz o seu Verbo encarnado, sofredor, morto
e ressuscitado e que o Espírito filial nos faz
participar da oração de Jesus.
2718. A contemplação é união à oração de Cristo na
medida em que nos faz participar no seu mistério. O
mistério de Cristo é celebrado pela Igreja na Eucaristia
e o Espírito Santo faz-nos viver dele na contemplação,
para que seja manifestado pela caridade em ato.
2719. A contemplação é uma comunhão de amor, portadora
de vida para a multidão, na medida em que é
consentimento em permanecer na noite da fé. A noite
pascal da ressurreição passa pela da agonia e do
sepulcro. São estes três tempos fortes da «Hora»
de Jesus, que o seu Espírito (e não a «carne»,
que é «fraca») nos faz viver na oração
contemplativa. É preciso consentir em velar uma hora com
Ele
(Cf. Mt. 26, 40-41).
Resumindo:
2720. A Igreja convida os fiéis para uma oração
regular: orações quotidianas, Liturgia das Horas,
Eucaristia dominical, festas do ano litúrgico.
2721. A tradição cristã compreende três expressões
principais da vida de oração: a oração vocal, a
meditação e a contemplação. Têm em comum o recolhimento
do coração.
2722. A oração vocal, fundada na união do corpo e do
espírito na natureza humana, associa o corpo à oração
interior do coração, a exemplo de Cristo que orava ao
Pai e ensinava o «Pai-nosso» aos seus discípulos.
2723. A meditação é uma busca orante que põe em ação
o pensamento, a imaginação, a emoção, o desejo. Tem por
finalidade a apropriação crente do tema considerado,
confrontado com a realidade da nossa vida.
2724. A contemplação é a expressão simples do
mistério da oração. É um olhar de fé fixo em Jesus, uma
escuta da Palavra de Deus, um amor silencioso. Realiza a
união com a oração de Cristo, na medida em que nos faz
participar no seu mistério.
ARTIGO 2
O COMBATE DA ORAÇÃO
2725. A oração é um dom da graça e uma resposta decidida
da nossa parte. Pressupõe sempre um esforço. Os grandes
orantes da Antiga Aliança antes de Cristo, bem como a
Mãe de Deus e os santos com Ele no-lo ensinam: a oração
é um combate. Contra quem? Contra nós mesmos e contra as
astúcias do Tentador que tudo faz para desviar o homem
da oração e da união com o seu Deus. Reza-se como se
vive, porque se vive como se reza. Se não se quiser agir
habitualmente segundo o Espírito de Cristo, também não
se pode orar habitualmente em seu nome. O «combate
espiritual» da vida nova do cristão é inseparável do
combate da oração.
I. As objecções à oração
2726. No combate da oração, temos de enfrentar, em nós e
à nossa volta, concepções erróneas da oração.
Alguns veem nela uma simples operação psicológica;
outros, um esforço de concentração para chegar ao vazio
mental; outros ainda, reduzem-na a atitudes e palavras
rituais. No inconsciente de muitos cristãos, rezar é uma
ocupação incompatível com tudo o que têm de fazer: não
têm tempo. Os que procuram a Deus na oração desanimam
depressa, porque não sabem que a oração também vem do
Espírito Santo e não somente de si próprios.
2727. Temos de enfrentar também certas mentalidades
«deste mundo» que nos invadem, se não estivermos
atentos. Por exemplo: só é verdadeiro o que se pode
verificar pela razão e pela ciência (mas orar é um
mistério que ultrapassa a nossa consciência e o nosso
inconsciente); os valores são a produção e o rendimento
(mas a oração é improdutiva, logo inútil); o sensualismo
e o conforto são os critérios do verdadeiro, do bem e do
belo (mas a oração, «amor da beleza» -
philocália - deixa-se encantar pela glória do Deus
vivo e verdadeiro); em reação ao ativismo, temos a
oração apresentada como fuga do mundo (mas a oração
cristã não é uma saída da história nem um divórcio da
vida).
2728. Finalmente, o nosso combate tem de enfrentar
aquilo que sentimos como sendo os nossos fracassos na
oração: desânimo na aridez, tristeza por não dar
tudo ao Senhor, porque temos «muitos bens»
(Cf. Mc. 10, 22)
decepção por não sermos atendidos segundo a
nossa própria vontade, o nosso orgulho ferido que se
endurece perante a nossa indignidade de pecadores,
alergia à gratuidade da oração, etc... A conclusão é
sempre a mesma: de que serve orar? Para vencer tais
obstáculos, é preciso combater com humildade, confiança
e perseverança.
II. A humilde vigilância do coração
PERANTE AS DIFICULDADES DA ORAÇÃO
2729. A dificuldade habitual da nossa oração é a
distração. Pode ter por objeto as palavras e o seu
sentido, na oração vocal; mais profundamente, pode
incidir sobre Aquele a Quem rezamos, na oração vocal
(litúrgica ou pessoal), na meditação e na contemplação.
Partir à caça das distrações seria cair nas suas
ciladas; basta regressar ao nosso coração: uma distração
revela-nos aquilo a que estamos apegados e está humilde
tomada de consciência diante do Senhor deve despertar o
nosso amor preferencial por Ele, oferecendo-Lhe
resolutamente o nosso coração para que Ele o purifique.
É aí que se situa o combate: na escolha do Senhor a quem
servir
(Cf. Mt. 6, 21.24).
2730. Positivamente, o combate contra o nosso eu,
possessivo e dominador, consiste na vigilância, a
sobriedade do coração. Quando Jesus insiste na
vigilância, esta refere-se sempre a Ele, à sua vinda, no
último dia e em cada dia: «hoje». O Esposo chega
a meio da noite. A luz que não se deve extinguir é a da
fé: «diz-me o coração: "procura a sua face"» (Sl.
27, 8).
2731. Outra dificuldade, especialmente para os que
querem rezar com sinceridade, é a aridez. Faz
parte da oração em que o coração está seco, sem gosto
pelos pensamentos, lembranças e sentimentos, mesmo
espirituais. É o momento da fé pura, que se aguenta
fielmente ao lado de Jesus na agonia e no sepulcro.
«Se o grão de trigo morrer, dará muito fruto» (Jo.
12, 24). Se a aridez for devida à falta de raiz, por a
Palavra ter caído em terreno pedregoso, o combate entra
no campo da conversão
(Cf. Lc. 8, 6.13).
PERANTE AS TENTAÇÕES NA ORAÇÃO
2732. A tentação mais comum e a mais oculta é a nossa
falta de fé. Exprime-se menos por uma incredulidade
declarada do que por uma preferência de fato. Quando
começamos a orar, mil trabalhos e preocupações, julgados
urgentes, apresentam-se-nos como prioritários. É mais
uma vez o momento da verdade do coração e do seu amor
preferencial. Umas vezes, voltamo-nos para o Senhor como
nosso último recurso: mas será que acreditamos mesmo
n'Ele? Outras vezes, tomamos o Senhor como aliado, mas
conservamos o coração cheio de presunção. Em todos os
casos, a nossa falta de fé revela que ainda não temos as
disposições de um coração humilde: «sem Mim, nada
podereis fazer» (Jo. 15, 5).
2733. Outra tentação, à qual a presunção abre a porta, é
a acedia. Os Padres espirituais entendem por ela
uma forma de depressão devida ao relaxamento da ascese,
à diminuição da vigilância, à negligência do coração.
«O espírito está decidido, mas a carne é fraca» (Mt.
26, 41). Quanto de mais alto se cai, mais magoado se
fica. O desânimo doloroso é o reverso da presunção. Quem
é humilde não se admira da sua miséria; ela leva-o a ter
mais confiança e a manter-se firme na constância.
III. A confiança filial
2734. A confiança filial é posta à prova - e prova-se a
si mesma - na tribulação
(Cf. Rm. 5, 3-5).
A principal dificuldade diz respeito à oração de
petição, na intercessão por si ou pelos outros.
Alguns deixam mesmo de orar porque, segundo pensam, o
seu pedido não é atendido. Aqui, duas questões se põem:
Por que é que pensamos que o nosso pedido não é
atendido? E como é que a nossa oração é atendida, e
«eficaz»?
PORQUE NOS LAMENTARMOS POR NÃO SERMOS ATENDIDOS?
2735. Antes de mais, uma constatação deveria
surpreender-nos. É que, quando louvamos a Deus ou Lhe
damos graças pelos seus benefícios em geral, não nos
importamos nada com saber se a nossa oração Lhe é
agradável, ao passo que exigimos ver o resultado da
nossa petição. Qual é, então, a imagem de Deus que
motiva a nossa oração: um meio a utilizar ou o Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo?
2736. Será que estamos convencidos de que «não
sabemos o que pedir, para rezar como devemos» (Rm.
8, 26)? Será que pedimos a Deus «os bens
convenientes»? O nosso Pai sabe muito bem do que
precisamos, antes que lhe peçamos
(Cf. Mt. 6, 8),
mas espera o nosso pedido, porque a dignidade dos seus
filhos está na sua liberdade. Devemos, pois, orar com o
seu Espírito de liberdade para podermos conhecer de
verdade qual é o seu desejo
(Cf. Rm. 8, 27).
2737. «Não tendes, porque não pedis. Pedis e não
recebeis, porque pedis mal, pois o que pedis é para
satisfazer as vossas paixões» (Tg. 4, 2-3)
(Cf. todo o contexto de Tg. 1, 5-8; 4, 1-10; 5, 16).
Se pedirmos com um coração dividido, «adúltero»
(Cf. Tg. 4, 4),
Deus não pode atender-nos, pois quer o nosso bem, a
nossa vida. «Ou pensais que a Escritura diz em vão:
"o Espírito que habita em nós ama-nos com ciúme"»?
(Tg. 4, 5). O nosso Deus é «ciumento» de nós e
isso é sinal da verdade do seu amor. Entremos no desejo
do seu Espírito e seremos atendidos:
- «não te aflijas, se não recebes logo de Deus o que
Lhe pedes: é que Ele quer beneficiar-te ainda mais pela
tua perseverança em permanecer com Ele na oração»
(Evágrio do Ponto, De Oratione, 34: PG 79, 1173).
- Ele quer «que o nosso desejo se exercite na oração
dilatando-nos, de modo a termos capacidade para receber
o que Ele prepara para nos dar»
(Santo Agostinho, Epistula 130, 8, 17: CSEL 44,
59 (PL 33, 500)).
COMO É QUE A NOSSA ORAÇÃO SERIA EFICAZ?
2738. A revelação da oração na economia da salvação
ensina-nos que a fé se apoia na ação de Deus na
história. A confiança filial é suscitada pela sua ação
por excelência: a paixão e ressurreição do seu Filho. A
oração cristã é cooperação com a sua providência, com o
seu desígnio de amor para com os homens.
2739. Em São Paulo, esta confiança é audaciosa
(Cf. Rm. 10, 12-13), apoiando-se na oração do Espírito em nós
e no amor fiel do Pai que nos deu o seu Filho Único
(Cf. Rm. 8, 26-39). A transformação do coração que ora é a
primeira resposta ao nosso pedido.
2740. A oração de Jesus faz da oração cristã uma petição
eficaz. Jesus é o modelo da oração cristã; Ele ora em
nós e conosco. Uma vez que o coração do Filho não
procura senão o que agrada ao Pai, como poderia o dos
filhos adotivos apegar-se mais aos dons que ao Doador?
2741. Jesus também ora por nós, em nosso lugar e em
nosso favor. Todos os nossos pedidos foram reunidos, de
uma vez por todas, no seu brado sobre a cruz e atendidos
pelo Pai na sua ressurreição; e é por isso que Ele não
cessa de interceder por nós junto do Pai
(Cf. Heb. 5, 7; 7, 25; 9, 24).
Se a nossa oração estiver resolutamente unida à de Jesus
na confiança e na audácia filial, obteremos tudo o que
pedirmos em seu nome e muito mais do que isto ou aquilo:
o próprio Espírito Santo que inclui todos os dons.
IV. Perseverar no amor
2742. «Orai sem cessar» (1ª Ts. 5, 17),
«daí sempre graças pôr tudo a Deus Pai, em nome de nosso
Senhor Jesus Cristo» (Ef. 5, 20),
«servindo-vos de toda a espécie de orações e preces,
orai em todo o tempo no Espírito Santo; e, para isso,
vigiai com toda a perseverança e com preces por todos os
santos» (Ef. 6, 18). «Não nos foi mandado que
trabalhemos, velemos e jejuemos constantemente, mas
temos a lei de orar sem cessar»
(Evágrio do Ponto, Capita practica ad Anatolium,
49: SC 171, 610 (PG 40, 1245)
Este fervor incansável só pode vir do amor. Contra a
nossa lentidão e preguiça, o combate da oração é o do
amor humilde, confiante e perseverante. Este amor
abre os nossos corações a três evidências de fé,
luminosas e vivificantes:
2743. Orar é sempre possível: O tempo do cristão
é o de Cristo Ressuscitado, que está «conosco todos
os dias» (Mt. 28, 20), sejam quais forem as
tempestades
(Cf. Lc. 8, 24).
O nosso tempo está na mão de Deus:
- «é possível, mesmo no mercado ou durante um passeio
solitário, fazer oração frequente e fervorosa; sentados
na vossa loja, a tratar de compras e vendas, até mesmo a
cozinhar»
(São João Crisóstomo, De Anna, sermo 4, 6: PG 54,
668).
2744. Orar é uma necessidade vital. A
demonstração do contrário não é menos convincente: se
não nos deixarmos conduzir pelo Espírito Santo,
recairemos na escravidão do pecado
(Cf. Gl. 5, 16-25).
Ora, como pode o Espírito Santo ser a «nossa vida»
se o nosso coração estiver longe d'Ele?
- «Nada iguala o valor da oração; ela torna possível o
impossível, fácil o difícil. [...] É impossível [...]
que o homem que ora caia no pecado»
(São João Crisóstomo, De Anna, sermo 4, 5: PG 54,
666).
«Quem reza salva-se, de certeza; quem não reza
condena-se, de certeza»».
2745. Oração e vida cristã são inseparáveis,
porque se trata do mesmo amor e da mesma renúncia que
procede do amor; da mesma conformidade filial e amorosa
com o desígnio de amor do Pai; da mesma união
transformante no Espírito Santo que nos conforma sempre
mais com Cristo Jesus; do mesmo amor para com todos os
homens, desse amor com que Jesus nos amou. «Tudo o
que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá. O
que vos mando é que vos ameis uns aos outros» (Jo.
15, 16-17).
(Santo Afonso de Ligório, Del gran mezzo della
preghiera, parte I, c. 1: ed. G. Cacciatore (Roma
1962) p. 32).
- «Ora sem cessar, aquele que une a oração às obras e as
obras à oração. Só assim é que podemos considerar como
realizável o preceito de orar incessantemente»
(Orígenes, De oratione, 12, 2: GCS 3, 324-325 (PG
11, 452)).
V. A oração da Hora de Jesus
2746. Ao chegar a sua «Hora», Jesus ora ao Pai
(Cf. Jo. 17).
A sua oração, a mais longa que nos é transmitida pelo
Evangelho, abraça toda a economia da criação e da
salvação, bem como a sua morte e ressurreição. A oração
da «Hora» de Jesus continua sempre sua, tal como
a sua Páscoa, acontecida «uma vez por todas»,
continua presente na liturgia da sua Igreja.
2747. A tradição cristã chama-lhe, a justo título, a
oração «sacerdotal» de Jesus. Ela é, de fato, a
oração do nosso Sumo-Sacerdote, inseparável do seu
sacrifício, da sua «passagem» (páscoa) deste
mundo para o Pai, em que é inteiramente «consagrado»
ao Pai
(Cf. Jo. 17, 11.13.19).
2748. Nesta oração pascal, sacrificial, tudo está
«recapitulado» n'Ele
(Cf. Ef. 1, 10):
Deus e o mundo, o Verbo e a carne, a vida eterna e o
tempo, o amor que se entrega e o pecado que o atraiçoa,
os discípulos presentes e os que n'Ele hão de crer pela
palavra deles, a humilhação e a glória. É a Oração da
Unidade.
2749. Jesus cumpriu perfeitamente a obra do Pai e a sua
oração, como o seu sacrifício estende-se até à
consumação do tempo. A oração da «Hora» preenche
os últimos tempos e leva-os à sua consumação. Jesus, o
Filho a Quem o Pai tudo deu, entrega-se todo ao Pai; e,
ao mesmo tempo, exprime-se com uma liberdade soberana
(Cf. Jo. 17, 11.13.19.24),
segundo o poder que o Pai Lhe deu sobre toda a carne. O
Filho, que se fez Servo, é o Senhor, o Pantocrátor.
O nosso Sumo-Sacerdote que ora por nós é também
Aquele que em nós ora e o Deus que nos atende.
2750. É entrando no santo nome do Senhor Jesus que
podemos acolher, desde dentro, a oração que Ele nos
ensina: «Pai nosso!». A sua oração sacerdotal
inspira, a partir de dentro, as grandes petições do
Pai-nosso: a preocupação com o nome do Pai (Cf.
Jo. 17, 6.11.12.26),
a paixão pelo seu Reino (a glória)
(Cf. Jo. 17, 1.5.10.22.23-26),
o cumprimento da vontade do Pai, do seu desígnio de
salvação
(Cf. Jo 17, 2.4.6.9.11.12.24)
e a libertação do mal
(Cf. Jo. 17, 15. 4).
2751. Finalmente, é nesta oração que Jesus nos revela e
nos dá o «conhecimento» indissociável do Pai e do
Filho
(Cf. Jo. 17, 3.6-10.25),
que é o próprio mistério da vida de oração.
Resumindo:
2752. A oração pressupõe esforço e luta contra nós
mesmos e contra as ciladas do Tentador. O combate da
oração é inseparável do «combate espiritual» necessário
para agir habitualmente segundo o Espírito de Cristo:
ora-se como se vive, porque se vive como se ora.
2753. No combate da oração, devemos enfrentar
concepções erróneas, diversas correntes de mentalidades
e a experiência dos nossos fracassos. A estas tentações,
que lançam a dúvida sobre a utilidade ou até mesmo a
possibilidade da oração, convém responder com humildade,
confiança e perseverança.
2754. As principais dificuldades no exercício da
oração são a distração e a aridez. O remédio está na fé,
na conversão e na vigilância do coração.
2755. Duas tentações frequentes ameaçam a oração: a
falta de fé e a acedia, que é uma espécie de depressão
devida ao relaxamento da ascese e que leva ao desânimo.
2756. A confiança filial é posta à prova quando temos
a sensação de nem sempre ser atendidos. O Evangelho
convida-nos a interrogarmo-nos sobre a conformidade da
nossa oração com o desejo do Espírito.
2757. «Orai sem cessar» (1ª Ts. 5, 17). Orar é
sempre possível. É, até uma necessidade vital. Oração e
vida cristã são inseparáveis.
2758. A oração da «Hora» de Jesus, justamente chamada
«oração sacerdotal»
(Cf. Jo. 17),
recapitula toda a economia da criação e da salvação.
É ela que inspira as grandes petições do «Pai-nosso».
A ORAÇÃO CRISTÃ
SEGUNDA SECÇÃO
A ORAÇÃO DO SENHOR: «PAI NOSSO»
2759. «Um dia, estava Jesus em oração, em certo
lugar. Quando acabou, disse-lhe um dos seus discípulos:
"Senhor, ensina-nos a orar, como João Baptista também
ensinou os seus discípulos"» (Lc. 11, 1). Foi em
resposta a este pedido que o Senhor confiou aos seus
discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental.
São Lucas apresenta-nos um texto breve dessa oração
(cinco petições)
(Cf. Lc. 11, 2-4);
São Mateus, uma versão mais desenvolvida (sete petições)
(Cf. Mt. 6, 9-13). A tradição litúrgica da Igreja reteve o
texto de São Mateus (Mt. 6, 9-13):
Pai Nosso que estais nos céus,
santificado seja o vosso Nome,
venha a nós o vosso Reino,
seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.
O pão nosso de cada dia nos daí hoje,
perdoai-nos as nossas ofensas
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido,
e não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do Mal.
2760. Bem cedo o uso litúrgico concluiu a oração do
Senhor por uma doxologia. Na Didaké: «porque Vosso é
o poder e a glória, pelos séculos»
(Didaké 8, 2: SC 248, 174 (Funk, Patres
apostolici 1, 20)). A esta doxologia, as Constituições
Apostólicas acrescentam no princípio: «o Reino»
(Constitutiones apostolicae 7, 24, 1: SC 336, 174
(Fink, Didascalia et Constitutiones Apostolorum
1, 410)),
e essa é a fórmula que se usa em nossos dias na oração
ecuménica. A tradição bizantina acrescenta, depois de
«a glória»: «Pai, Filho e Espírito Santo». O
Missal Romano amplia a última petição
(Cf. Rito da Comunhão, [Embolismo]: Missale
Romanum, editio typica (Typis Polyglottis Vaticanis
1970), p. 472 [Missal Romano, Gráfica de Coimbra
1992, p. 545])
na perspectiva explícita da «expectativa da
bem-aventurada esperança»
(Cf. Tt. 2, 13)
e da vinda de Jesus Cristo nosso Senhor, seguindo-se a
aclamação da assembleia que retoma a doxologia das
Constituições Apostólicas.
ARTIGO 1
«O RESUMO DE TODO O EVANGELHO»
2761. «A oração dominical é verdadeiramente o resumo
de todo o Evangelho»
(Tertuliano, De Oratione, 1, 6: CCL 1, 258 (PL 1,
1255)).
«Depois de o Senhor nos ter legado esta fórmula de
oração, acrescentou "Pedi e recebereis" (Jo. 16, 24).
Cada um pode, portanto, dirigir ao céu diversas orações
segundo as suas necessidades, mas começando sempre pela
oração do Senhor, que continua a ser a oração
fundamental»
(Tertuliano, De Oratione, 10: CCL 1, 263 (PL 1,
1268-1269)).
I. No centro da Sagrada Escritura
2762. Depois de ter mostrado como os Salmos são o
alimento principal da oração cristã e convergem para as
petições do Pai-nosso, Santo Agostinho conclui:
- «percorrei todas as orações que existem na Sagrada
Escritura; não creio que possais encontrar uma só que
não esteja incluída e compendiada nesta oração
dominical»
(Santo Agostinho, Epistula 130, 12, 22: CSEL 44,
66 (PL 33, 502)).
2763. Todas as Escrituras (a Lei, os Profetas e os
Salmos) se cumpriram em Cristo
(Cf. Lc. 24, 44).
O Evangelho é esta «boa-nova». O seu primeiro
anúncio está resumido por São Mateus no sermão da
montanha
(Cf. Mt. 5-7).
Ora a oração do Pai-nosso está no centro deste anúncio.
E é neste contexto que se elucida cada uma das petições
da oração legada pelo Senhor:
- «a oração dominical é a mais perfeita das orações
[...]. Nela, não só pedimos tudo quanto podemos
retamente desejar, mas também segundo a ordem em que
convém desejá-lo. De modo que esta oração, não só nos
ensina a pedir, mas também plasma todos os nossos
afetos»
(São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 2-2, q.
83, a. 9, c: Ed. Leon. 9, 201).
2764. O sermão da montanha é doutrina de vida e a oração
dominical é prece; mas num e noutra, o Espírito do
Senhor dá uma forma nova aos nossos desejos, a esses
movimentos interiores que animam a nossa vida. Jesus
ensina-nos a vida nova com as suas palavras e ensina-nos
a pedi-la pela oração. Da retidão da nossa oração
dependerá a da nossa vida n' Ele.
II. «A oração do Senhor»
2765. A expressão tradicional «oração dominical»
(isto é, «oração do Senhor») significa que a
prece dirigida ao nosso Pai nos foi ensinada e legada
pelo Senhor Jesus. Tal oração, que nos vem de Jesus, é
verdadeiramente única: é «do Senhor».
Efetivamente, por um lado, nas palavras desta oração o
Filho Único dá-nos as palavras que o Pai Lhe deu
(Cf. Jo. 17, 7):
Ele é o mestre da nossa oração. Por outro lado, sendo o
Verbo encarnado, Ele conhece no seu coração de homem as
necessidades dos seus irmãos e irmãs humanos e
revela-no-las: Ele é o modelo da nossa oração.
2766. Mas Jesus não nos deixa uma fórmula para ser
repetida maquinalmente
(Cf. Mt. 6, 7; 1º Rs. 18, 26-29).
Como em toda a oração vocal, é pela Palavra de Deus que
o Espírito Santo ensina os filhos de Deus a orar ao seu
Pai. Jesus dá-nos, não somente as palavras da nossa
oração filial, mas também, ao mesmo tempo, o Espírito
pelo qual elas se tornam em nós «espírito e vida»
(Jo. 6, 63). Mais ainda: a prova e a possibilidade da
nossa oração filial é que o Pai «enviou aos nossos
corações o Espírito do seu Filho que clama: "Abbá! ó
Pai!"» (Gl. 4, 6). Uma vez que a nossa oração traduz
os nossos desejos diante do Pai, é ainda «Aquele que
sonda os corações», o Pai, que «conhece o desejo
do Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito
intercede pelos santos» (Rm. 8, 27). A oração
ao nosso Pai insere-se na missão misteriosa do Filho e
do Espírito.
III. A oração da Igreja
2767. Esta dádiva indissociável das palavras do Senhor e
do Espírito Santo que lhes dá vida no coração dos
crentes foi recebida e vivida pela Igreja desde as
origens. As primeiras comunidades rezavam a oração do
Senhor «três vezes por dia»
(Didaké 8, 3: SC 284, 174 (Funk, Patres
Apostolici, 1, 20)),
em vez das «dezoito bênçãos» usadas pela piedade
judaica.
2768. Segundo a Tradição apostólica, a oração do Senhor
está essencialmente radicada na oração litúrgica:
- o Senhor «ensina-nos a fazer a nossa oração em
comum por todos os nossos irmãos. Porque Ele não diz
“meu Pai” que estás nos céus, mas sim nosso Pai, para
que a nossa oração seja, numa só alma, por todo o corpo
da Igreja»
(São João Crisóstomo, In Matthaeum, homilia 19,
4: PG 57, 278).
Em todas as tradições litúrgicas, a oração do Senhor é
parte integrante das «horas» principais do Ofício
Divino. Mas é sobretudo nos três sacramentos da
iniciação cristã que o seu caráter eclesial aparece com
evidência:
2769. No Batismo e na Confirmação, a
entrega («traditio») da oração do Senhor
significa o novo nascimento para a vida divina. Uma vez
que a oração cristã consiste em falar a Deus com a
própria Palavra de Deus, aqueles que são «regenerados
[...] pela palavra do Deus vivo» (1ª Pe. 1,
23) aprendem a invocar o seu Pai com a única palavra que
Ele escuta sempre. E podem fazê-lo a partir de então,
porque o selo da unção do Espírito Santo foi gravado
indelevelmente no seu coração, nos seus ouvidos, nos
seus lábios, em todo o seu ser filial. É por isso que a
maior parte dos comentários patrísticos ao Pai-nosso são
dirigidos aos catecúmenos e aos neófitos. Quando a
Igreja reza a oração do Senhor, é sempre o povo dos
«recém-nascidos» que ora e alcança misericórdia
(Cf 1ª Pe. 2, 1-10).
2770. Na liturgia eucarística, a oração do Senhor
aparece como a oração de toda a Igreja. Ali se revela o
seu sentido pleno e a sua eficácia. Situada entre a
anáfora (oração eucarística) e a liturgia da comunhão,
recapitula, por um lado, todas as petições e
intercessões expressas no movimento da epiclese; e por
outro, bate à porta do festim do Reino que a Comunhão
sacramental vai antecipar.
2771. Na Eucaristia, a oração do Senhor manifesta
também o caráter escatológico das suas petições.
É a oração própria dos «últimos tempos», dos
tempos da salvação que começaram com a efusão do
Espírito Santo e terminarão com o regresso do Senhor. Os
pedidos que fazemos ao nosso Pai, diferentemente das
orações da Antiga Aliança, apoiam-se no mistério da
salvação já realizada, duma vez para sempre, em Cristo
crucificado e ressuscitado.
2772. Desta fé inabalável brota a esperança que suscita
cada uma das sete petições. Estas exprimem os gemidos do
tempo presente, este tempo da paciência e da espera,
durante o qual «ainda não se manifestou o que havemos
de ser» (1ª Jo. 3, 2)
(Cf. Cl. 3, 4).
A Eucaristia e o Pai-nosso tendem para a vinda do
Senhor, «até que Ele venha!» (1ª Cor. 11,
26).
Resumindo:
2773. Em resposta ao pedido dos seus discípulos
(«Senhor, ensina-nos a orar»: Lc 11, 1), Jesus
confia-lhes a oração cristã fundamental do «Pai-nosso».
2774. «A Oração Dominical é verdadeiramente o resumo
de todo o Evangelho»
(Tertuliano,
De oratione, 1, 6: CCL 1, 258 (PL 1, 1255)),
«a mais perfeita das orações»
(São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 2-2, q.
83, a. 9, c: Ed. Leon. 9, 201).
Está no centro da Sagrada Escritura.
2775. É chamada «Oração Dominical», porque nos vem do
Senhor Jesus, mestre e modelo da nossa oração.
2776. A Oração Dominical é a oração da Igreja por
excelência. Faz parte integrante das «horas» principais
do Ofício Divino e dos sacramentos da iniciação cristã:
Baptismo, Confirmação e Eucaristia. Integrada na
Eucaristia, manifesta o carácter «escatológico» das suas
petições, na confiança do Senhor, «até que Ele venha»
(1ª Cor. 11, 26).
ARTIGO 2
«PAI NOSSO, QUE ESTAIS NOS CÉUS»
I. «Ousar aproximar-se com toda a confiança»
2777. Na liturgia romana, a assembleia
eucarística é convidada a orar ao nosso Pai com ousadia
filial. As liturgias orientais utilizam e desenvolvem
expressões análogas: «ousar com toda a segurança»,
«tomai-nos dignos de». Diante da sarça ardente
foi dito a Moisés: «não te aproximes. Descalça as
sandálias» (Ex. 3, 5). Este umbral da santidade
divina, só Jesus o podia franquear, Ele que, «tendo
realizado a purificação dos pecados» (Heb. 1, 3),
nos introduz perante a face do Pai: «eis-me, a mim e
aos filhos que Deus Me deu»! (Heb. 2, 13):
- «a consciência que temos da nossa situação de
escravos far-nos-ia sumir sob o chão, a nossa condição
terrena dissolver-se-ia em pó, se a autoridade do
próprio Pai e o Espírito do Seu Filho não nos levasse a
soltar este grito dizendo: "Deus mandou o Espírito do
Seu Filho aos nossos corações clamando Abba, ó Pai!"
(Rm. 8, 15) [...]. Quando é que a fraqueza dum mortal
se atreveria a chamar a Deus seu Pai, senão somente
quando o íntimo do homem é animado pelo poder do alto?»
(São Pedro Crisólogo, Sermão 71, 3: CCL 24A, 425
(PL 52, 401)).
2778. Este poder do Espírito que nos introduz na oração
do Senhor é expresso, nas liturgias do Oriente e do
Ocidente, pela bela expressão tipicamente cristã:
«paresia», simplicidade sem desvio, confiança
filial, segurança alegre, ousadia humilde, certeza de
ser amado
(Cf. Ef. 3, 12; Heb. 3, 6; 4, 16; 10, 19; 1 Jo. 2, 28;
3, 21; 5, 14).
II. «Pai»
2779. Antes de fazermos nosso este primeiro impulso da
oração do Senhor, convém purificar humildemente o nosso
coração de certas falsas imagens «deste mundo».
A humildade faz-nos reconhecer que «ninguém
conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho Se
dignar revelá-Lo», quer dizer “os pequeninos”» (Mt.
11, 25-27). A purificação do coração
refere-se às imagens paternas ou maternas provenientes
da nossa história pessoal e cultural, que influenciam o
nosso relacionamento com Deus. É que Deus, nosso Pai,
transcende as categorias do mundo criado. Transpor para
Ele ou contra Ele, as nossas ideias neste domínio, seria
fabricar ídolos, a adorar ou a derrubar. Orar ao Pai é
entrar no seu mistério, tal como Ele é e tal como o
Filho no-Lo revelou:
- «a expressão Deus Pai nunca tinha sido revelada a
ninguém. Quando o próprio Moisés perguntou a Deus quem
era, ouviu um nome diferente. A nós, este nome foi
revelado no Filho; porque este nome (de Filho) implica o
nome de Pai»
(Tertuliano, De oratione, 3, 1: CCL 1, 258-259
(PL 1, 1257)).
2780. Nós podemos invocar Deus como «Pai», porque
Ele nos foi revelado pelo seu Filho feito homem e
porque o seu Espírito no-Lo faz conhecer. A relação
pessoal do Filho com o Pai
(Cf. Jo. 1, 1. 11),
que o homem não pode conceber nem os poderes angélicos
podem entrever, eis que o Espírito do Filho nos faz
participar dela, a nós que cremos que Jesus é o Cristo e
que nascemos de Deus
(Cf. 1ª Jo. 5, 1).
2781. Quando oramos ao Pai, estamos em comunhão com
Ele e com o seu Filho Jesus Cristo
(Cf. 1ª Jo. 1, 3).
É então que O reconhecemos num encantamento sempre novo.
A primeira palavra da oração do Senhor é uma bênção de
adoração, antes de ser uma súplica. Porque a glória de
Deus é que nós O reconheçamos como «Pai», Deus
verdadeiro. Damos-Lhe graças por nos ter revelado o seu
nome, por nos ter dado a graça de acreditar n'Ele, de
sermos habitados pela sua presença.
2782. Nós podemos adorar o Pai porque Ele nos fez
renascer para a sua vida adotando-nos por seus
filhos no seu Filho Único: pelo Batismo, incorpora-nos
no corpo do seu Cristo; e pela Unção do seu Espírito,
que da Cabeça se derrama pelos membros, faz de nós
«cristos»:
- «Deus, que nos predestinou para a adoção de filhos,
tornou-nos conformes ao corpo glorioso de Cristo.
Doravante, pois, participantes de Cristo, sois com todo
o direito chamados "cristos"»
(São Cirilo de Jerusalém, Catecheses mystagogicae,
3, 1: SC 126, 120 (PG 33, 1088)).
- «O homem novo, que renasceu e foi restituído ao seu
Deus pela graça, começa por dizer, "Pai!", porque se
tornou filho»
(São Cipriano de Catargo, De dominica oratione,
9: CCL 3A, 94 (PL 4, 541)).
2783. Deste modo, pela oração do Senhor, nós somos
revelados a nós próprios, ao mesmo tempo que nos é
revelado o Pai
(Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et
spes, 22: AAS 58 (1966) 1042):
- «ó homem, tu não ousavas levantar o teu rosto para
o céu, baixavas os teus olhos para a terra, e de repente
recebeste a graça de Cristo: todos os pecados te foram
perdoados, de mau servo tornaste-te bom filho [...].
Portanto, ergue os olhos para o Pai que te resgatou pelo
seu Filho e diz: Pai nosso [...]. Mas não reivindiques
para ti algo de especial. Só de Cristo é que Ele é Pai
de modo especial, de todos nós é Pai em comum; porque só
a Ele gerou, ao passo que a nós, criou-nos. Portanto,
por graça, diz também tu "Pai nosso", para mereceres ser
filho»
(Santo Ambrósio, De sacramentas, 5, 19: CSEL 73,
66 (PL 16, 450)).
2784. Este dom gratuito da adopção exige da nossa parte
uma conversão contínua e uma vida nova. Orar ao
nosso Pai deve desenvolver em nós duas disposições
fundamentais:
O desejo e a vontade de nos parecermos com Ele.
Criados à sua imagem, é pela graça que a
semelhança nos é restituída e a ela devemos
corresponder.
- «Devemos lembrar-nos de que, quando chamamos a Deus
«Pai nosso», temos de nos comportar como filhos de Deus»
(São Cirpiano de Cartago, De dominica oratione,
11: CCL 3A, 96 (PL 4, 543)).
- «Vós não podeis chamar vosso Pai ao Deus de toda a
bondade se conservardes um coração cruel e desumano;
porque, nesse caso, já não tendes a marca da bondade do
Pai celeste»
(São João Crisóstomo, De angusta porta et in
Orationem dominicam, 3: PG 51, 44).
- «Devemos contemplar incessantemente a beleza do Pai
e impregnar dela a nossa alma»
(São Gregório de Nissa, Homiliae in Orationem
dominicam, 2: Gregorii Nysseni opera, ed. W.
Jaeger-H. Langerbeck, v. 7/2 (leiden 1992) p. 30 (PG 44,
1148))
2785. Um coração humilde e confiante que nos faça
«voltar ao estado de crianças» (Mt. 18, 3):
porque é aos «pequeninos» que o Pai Se revela
(Mt. 11, 25):
- é um estado «que se forma contemplando a Deus
somente, com o ardor da caridade. Nele, a alma funde-se
e abisma-se em santa dileção e trata com Deus como com o
seu próprio Pai, muito familiarmente, numa ternura de
piedade muito particular»
(São João Cassiano, Conlatio, 9, 18, 1: CSEL 13,
265-266 (PL 49, 788)).
- «Pai nosso - que haverá de mais querido para os filhos
do que o pai? - Este nome suscita em nós ao mesmo tempo
o amor, o afeto na oração, [...] e também a esperança de
obter o que vamos pedir [...]. De fato, que pode Ele
recusar à súplica dos seus filhos, quando já previamente
lhes permitiu que fossem filhos seus»?
(Santo Agostinho, De sermone Domini in monte, 2,
4, 16: CCL 35, 106 (PL 34, 1276)).
III. Pai «nosso»
2786. Pai «nosso» refere-se a Deus. Pela nossa
parte, o adjetivo «nosso» não exprime uma posse,
mas sim uma relação totalmente nova com Deus.
2787. Quando dizemos Pai «nosso»,
reconhecemos, antes de mais nada, que todas as suas
promessas de amor, anunciadas pelos profetas, se
cumpriram na Nova e eterna Aliança no seu Cristo:
nós tornámo-nos o «seu» povo e Ele é doravante o
«nosso» Deus. Esta relação nova é uma pertença
mútua, dada gratuitamente: é por amor e fidelidade
(Cf. Os. 2, 21-22; 6, 1-6)
que temos de responder «à graça e à verdade» que
nos foram dadas em Cristo Jesus
(Cf. Jo. 1, 17).
2788. Uma vez que a oração do Senhor é a do seu povo nos
«últimos tempos», este «nosso» exprime
também a certeza da nossa esperança na última promessa
de Deus: na Jerusalém nova, Ele dirá ao vencedor: «Eu
serei o seu Deus e ele será o meu Filho» (Ap. 21,
7).
2789. Rezando ao «nosso» Pai, é ao Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo que nós nos dirigimos pessoalmente.
Não dividimos a divindade, pois que o Pai é a sua
«fonte e origem», mas confessamos desse modo que o
Filho é por Ele gerado eternamente e que d'Ele procede o
Espírito Santo. Também não confundimos as Pessoas, pois
confessamos que a nossa comunhão é com o Pai e com o seu
Filho Jesus Cristo no seu único Espírito Santo. A
Santíssima Trindade é consubstancial e indivisível.
Quando rezamos ao Pai, adoramo-Lo e glorificamo-Lo com o
Filho e o Espírito Santo.
2790. Gramaticalmente, «nosso» qualifica uma
realidade comum a vários. Há um só Deus, que é
reconhecido como Pai por aqueles que, pela fé no seu
Filho Único, renasceram d'Ele pela água e pelo Espírito
(Cf. 1ª Jo. 5, 1; Jo 3, 5).
A Igreja é esta nova comunhão de Deus com os
homens; unida ao Filho Único, que se tornou o
«primogénito de muitos irmãos» (Rm. 8, 29),
ela está em comunhão com um só e mesmo Pai, num só e
mesmo Espírito Santo
(Cf. Ef. 4, 4-6). Ao rezar Pai «nosso», cada
batizado reza nesta comunhão: «a multidão dos que
haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma»
(At. 4, 32).
2791. É por isso que, apesar das divisões dos cristãos,
a oração ao «nosso» Pai continua a ser um bem
comum e um apelo premente para todos os batizados. Em
comunhão pela fé em Cristo e pelo Batismo, eles devem
participar na oração de Jesus pela unidade dos seus
discípulos
(Cf. II Concílio do Vaticano, Decr. Unitatis
redintegratio, 8: AAS 57 (1965) 98; Ibid., 22: AAS
57 (1965) 105-106).
2792. Por fim, se rezamos em verdade o «Pai-nosso»,
saímos do individualismo, pois o Amor que nós acolhemos
dele nos liberta. O «nosso» do princípio da
oração do Senhor, tal como o «nos» das quatro
últimas petições, não é exclusivo de ninguém. Para que
seja dito em verdade
(Cf. Mt. 5, 23-24; 6, 14-15),
as nossas divisões e oposições têm de ser superadas.
2793. Os batizados não podem dizer Pai «nosso»,
sem levar até junto d'Ele todos aqueles por quem Ele deu
o seu Filho bem-amado. O amor de Deus é sem fronteiras;
a nossa oração deve sê-lo também
(Cf. II Concílio do Vaticano, Decl. Nostra aetate,
5: AAS 58 (1966) 743-744).
Rezar Pai «nosso» abre-nos às dimensões do seu
amor manifestado em Cristo: orar com e por todos os
homens que ainda O não conhecem, para que sejam
«reunidos na unidade»
(Cf. Jo. 11, 52). Este cuidado divino por todos os homens e
por toda a criação animou todos os grandes orantes; deve
também dilatar a nossa oração num amor sem limites,
quando ousamos dizer: Pai «nosso».
IV. «Que estais nos céus»
2794. Esta expressão bíblica não significa um lugar («o
espaço»), mas um modo de ser; não é o distanciamento
de Deus, mas a sua majestade. O nosso Pai não está
«algures», está «para além de tudo» o que
podemos conceber da sua santidade. E é por ser três
vezes santo que Ele está mesmo junto do coração humilde
e contrito:
- «é com razão que estas palavras: "Pai nosso que estais
nos céus" se referem ao coração dos justos, nos quais
Deus habita como em seu templo. Por isso, também aquele
que ora há de desejar ver morar em si Aquele a quem
invoca»
(Santo Agostinho, De sermone Domini in monte, 2,
5, 18: CCL 35, 108-109 (PL 34, 1277)).
«Os "céus" também poderiam muito bem ser aqueles que
trazem em si a imagem do mundo celeste e em quem Deus
mora e passeia»
(São Cirilo de Jerusalém, Catecheses mystagogicae,
5, 11: SC 126, 160 (PG 33, 1117)).
2795. O símbolo dos céus remete-nos para o
mistério da Aliança que nós vivemos, quando rezamos ao
Pai. Ele está nos céus: é a sua morada. A casa do Pai é,
pois, a nossa «pátria». Foi da terra da Aliança
que o pecado nos exilou
(Cf. Gn. 3),
e é para o Pai, para o céu, que a conversão do coração
nos faz voltar
(Cf. Jr. 3, 19 – 4, 1 a; Lc. 15, 18.21).
Ora, foi em Cristo que o céu e a terra se reconciliaram
(Cf. Is. 45, 8; Sl. 85, 12),
porque o Filho «desceu do céu», sozinho, e para
lá nos faz subir juntamente consigo, pela sua cruz,
ressurreição e ascensão
(Cf. Jo. 12, 32; 14, 2-3; 16, 28; 20, 17; Ef. 4, 9-10;
Heb. 1, 3; 2, 13).
2796. Quando a Igreja reza «Pai nosso que estais nos
céus», professa que somos o povo de Deus já sentado
nos céus em Cristo Jesus
(Cf. Ef. 2, 6)
escondidos com Cristo em Deus
(Cf. Cl. 3, 3)
e que, ao mesmo tempo, «gememos nesta tenda, ansiando
por revestir-nos da nossa habitação celeste» (2ª
Cor. 5, 2)
(Cf. Fl. 3, 21; Heb. 13, 14):
- os cristãos «estão na carne, mas não vivem segundo
a carne. Passam a vida na terra, mas são cidadãos do
céu»
(Epístola a Diogneto, 5, 8-9: SC 33, 62-64 (Funk,
1, 398)).
Resumindo:
2797. A confiança simples e fiel, a segurança humilde
e alegre são as disposições que convêm a quem reza o
Pai-Nosso.
2798. Podemos invocar Deus como «Pai», porque no-Lo
revelou o Filho de Deus feito homem, em quem, pelo
Batismo, somos incorporados e adotados como filhos de
Deus.
2799. A oração do Senhor põe-nos em comunhão com o
Pai e com seu Filho Jesus Cristo. E, ao mesmo tempo,
revela-nos a nós mesmos
(Cf.
II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes,
22: AAS 58 (1966) 1042).
2800. Rezar ao nosso Pai deve fazer crescer em nós a
vontade de nos parecermos com Ele e criar em nós um
coração humilde e confiante.
2801. Ao dizermos Pai «nosso», invocamos a Nova
Aliança em Jesus Cristo, a comunhão com a Santíssima
Trindade e a caridade divina que, através da Igreja, se
estende às dimensões do mundo.
2802. A expressão «que estais nos céus» não designa
um lugar, mas sim a majestade de Deus e a sua presença
no coração dos justos. O céu, a Casa do Pai, constitui a
verdadeira pátria, para onde caminhamos e à qual desde
já pertencemos.
ARTIGO 3
AS SETE PETIÇÕES
2803. Depois de nos termos posto na presença de Deus
nosso Pai para O adorarmos, amarmos e bendizermos, o
Espírito filial faz brotar dos nossos corações sete
petições, que são sete bênçãos. As três primeiras, mais
teologais, atraem-nos para a glória do Pai; as quatro
últimas, como caminhos para Ele, expõem a nossa miséria
à sua graça. «Abismo atrai abismo» (Sl. 42, 8).
2804. O primeiro conjunto leva-nos até Ele, para Ele:
o vosso nome, o vosso Reino, a vossa
vontade! É próprio do amor pensar, em primeiro lugar, n'
Aquele que amamos. Em cada um dos três pedidos, nós não
«nos» nomeamos, mas o que nos move é o «desejo
ardente», é mesmo «a ânsia» do Filho
bem-amado pela glória de seu Pai
(Cf. Lc. 22, 15; 12, 50):
«Santificado seja [...]. Venha [...]. Seja feita...».
Estas três súplicas já foram atendidas no sacrifício de
Cristo Salvador, mas agora estão orientadas, na
esperança, para o seu cumprimento final, enquanto Deus
ainda não é tudo em todos
(Cf. 1ª Cor. 15, 28).
2805. O segundo conjunto de petições segue a dinâmica de
certas epicleses eucarísticas: é oferenda das nossas
expectativas e atrai o olhar do Pai das misericórdias.
Parte de nós e diz-nos respeito já agora, neste mundo:
«dai-nos [...], perdoai-nos [...], não nos deixeis
[...], livrai-nos...». A quarta e quinta petições
dizem respeito à nossa vida, como tal, quer para a
alimentar, quer para a curar do pecado. As duas últimas
dizem respeito ao nosso combate pela vitória da vida,
que é o próprio combate da oração.
2806. Pelas três primeiras petições, somos confirmados
na fé, repletos de esperança e abrasados pela caridade.
Criaturas e, para além disso, pecadores, devemos pedir
por nós - um «nós» à medida do mundo e da
história - que entregamos ao amor sem medida do nosso
Deus. Pois é pelo nome do seu Cristo e pelo Reino do seu
Espírito Santo que o nosso Pai realiza o seu desígnio de
salvação para nós e para todo o mundo.
I. «Santificado seja o vosso nome»
2807. A palavra «santificar» deve ser entendida, aqui,
antes de mais, não no seu sentido causativo (só Deus
santifica, torna santo), mas sobretudo num sentido
estimativo: reconhecer como santo, tratar de um modo
santo. É assim que, na adoração, esta invocação é por
vezes entendida como louvor e ação de graças
(Cf. Sl. 111, 9; Lc. 1, 49).
Mas esta petição é-nos ensinada por Jesus na forma
optativa: um pedido, um desejo, e expectativa na qual
Deus e o homem estão empenhados. Desde a primeira
petição ao nosso Pai, mergulhamos no mistério íntimo da
sua divindade e no drama da salvação da nossa
humanidade. Pedir-Lhe que o seu nome seja santificado é
envolvermo-nos «no desígnio benevolente que Ele de
antemão formou a nosso respeito» (Ef. 1, 9), para
que «sejamos santos e imaculados diante d'Ele, no
amor» (Ef. 1, 4).
2808. Nos momentos decisivos da sua economia, Deus
revela o seu nome; mas revela-o realizando a sua obra.
Ora esta obra só se realiza, para nós e em nós, se o seu
nome for santificado por nós e em nós.
2809. A santidade de Deus é o foco inacessível do seu
mistério eterno. Ao que dela se manifestou na criação e
na história, a Escritura chama Glória, a
irradiação da sua majestade
(Cf. Sl. 8; Is. 6, 3).
Ao fazer o homem «à sua imagem e semelhança» (Gn.
1, 26), Deus «coroa-o de glória»
(Cf. Sl. 8, 6),
mas, ao pecar, o homem é «privado da glória de Deus»
(Cf. Rm. 3, 23).
Desde então, Deus vai manifestar a sua santidade
revelando e dando o seu nome, para restaurar o homem
«à imagem do seu Criador» (Cl. 3, 10).
2810. Na promessa feita a Abraão e no juramento que a
acompanha
(Cf. Heb. 6, 13),
Deus compromete-se a Si mesmo, mas sem revelar o seu
nome. É a Moisés que começa a revelá-Lo
(Cf. Ex. 3, 14),
e manifesta-O aos olhos de todo o povo salvando-o dos
Egípcios: «revestiu-Se de glória» (Ex. 15,
1). A partir da Aliança do Sinai, este povo é «seu»
e deve ser uma «nação santa» (ou consagrada; em
hebreu é a mesma palavra)
(Cf. Ex. 19, 5-6),
porque o nome de Deus habita nela.
2811. Ora, apesar da Lei santa que o Deus santo lhe deu
e tornou a dar
(Cf. Lv. 19, 2: «Sede santos, porque Eu, o Senhor
vosso Deus, sou santo»),
e muito embora o Senhor, «por respeito pelo seu nome»,
usasse de paciência, o povo desviou-se do Santo de
Israel e «profanou o seu nome entre as nações»
(Cf. Ez. 20; 36).
Por isso, os justos da Antiga Aliança, os pobres
retornados do exílio e os profetas arderam de paixão
pelo Nome.
2812. Finalmente, é em Jesus que o nome do Deus santo
nos é revelado e dado, na carne, como salvador
(Cf. Mt. 1, 21; Lc. 1, 31):
revelado pelo que Ele é, pela sua Palavra e pelo seu
sacrifício
(Cf. Jo. 8, 28; 17, 8; 17, 17-19).
É o coração da sua oração sacerdotal: «Pai santo,
[...] por eles Eu me consagro para que também eles sejam
consagrados na verdade» (Jo. 17, 19). Porque Ele
próprio «santifica» o seu nome
(Cf. Ez. 20, 39; 36, 20-21),
é que Jesus nos «manifesta» o nome do Pai
(Cf. Jo. 17, 6).
No termo da sua Páscoa é que o Pai Lhe dá então o nome
que está acima de todo o nome: Jesus é Senhor para
glória de Deus Pai
(Cf. Fl. 2, 9-11).
2813. Na água do Batismo, nós fomos «purificados,
santificados, justificados pelo nome do Senhor Jesus
Cristo e pelo Espírito do nosso Deus» (1ª Cor. 6,
11). Em toda a nossa vida, o nosso Pai chama-nos «à
santidade» (1ª Ts. 4, 7) e, uma vez que é por
Ele que nós estamos em Cristo Jesus, «o qual Se
tornou para nós [...] santidade» (1ª Cor. 1,
30), interessa à sua glória e à nossa vida que o seu
nome seja santificado em nós e por nós. Tal é a urgência
da nossa primeira petição.
- «Por quem poderia Deus ser santificado se é Ele
próprio quem santifica? Mas porque Ele mesmo disse:
"sede santos, porque Eu sou santo"
(Lv. 14, 44), nós que fomos santificados no Batismo,
pedimos e rogamos para perseverar no que começámos a
ser. E isso nós o pedimos todos os dias. Precisamos de
uma santificação quotidiana para que, incorrendo em
faltas todos os dias, todos os dias sejamos delas
purificados por uma santificação assídua [...] Portanto,
oramos para que esta santificação permaneça em nós»
(São Cipriano de Cartago, De dominica oratione,
12: CCL 3A, 96-97 (PL 4, 544)).
2814. Depende inseparavelmente da nossa vida e da
nossa oração que o seu nome seja santificado
entre as nações:
- «pedimos a Deus que o seu nome seja santificado,
porque é pela santidade que Ele salva e santifica toda a
criação. [...] Este é o nome que dá a salvação ao mundo
perdido. Mas nós pedimos que este nome de Deus seja
santificado em nós pela nossa atuação. Porque se nós
agirmos bem, o nome de Deus é bendito; mas é blasfemado
se agirmos mal. Escuta o que diz o Apóstolo: "o nome de
Deus é blasfemado entre as nações, por causa de vós"
(Rm. 2, 24)
(Cf. Ez. 36, 20-22).
Nós, portanto, pedimos para merecermos ter nos nossos
costumes tanta santidade, quanto é santo o nome de Deus»
(São Pedro Crisólogo, Sermão 71, 4: CCL 24A, 425
(PL 52, 402)).
- «Quando dizemos: "Santificado seja o vosso nome",
pedimos que ele seja santificado em nós que estamos
n'Ele, mas também nos outros, por quem a graça de Deus
ainda está à espera, para nos conformarmos com o
preceito que nos obriga a orar por todos, mesmo pelos
nossos inimigos. É por isso que nós não dizemos
expressamente: santificado seja o vosso nome "em nós",
porque pedimos que o seja em todos os homens»
(Tertuliano, De oratione, 3, 4: CCL 1, 259 (PL 1,
1259)).
2815. Esta petição, que as inclui todas, é atendida pela
oração de Cristo, como as restantes seis petições que se
seguem. A oração que fazemos ao nosso Pai é nossa, se
for rezada «em nome» de Jesus
(Cf. Jo. 14, 13; 15, 16; 16, 24.26).
Na sua oração sacerdotal, Jesus pede: «Pai santo,
guarda em teu nome aqueles que Me deste» (Jo. 17,
11).
II. «Venha a nós o vosso Reino»
2816. No Novo Testamento, a mesma palavra «basileia»
pode traduzir-se por realeza (nome abstrato), reino
(nome concreto) ou reinado (nome de ação). O Reino de
Deus está diante de nós. Aproximou-se no Verbo
encarnado, foi anunciado através de todo o Evangelho,
veio na morte e ressurreição de Cristo. O Reino de Deus
vem desde a santa ceia e, na Eucaristia, está no meio de
nós. O Reino virá na glória, quando Cristo o entregar a
seu Pai:
- «é mesmo possível [...] que o Reino de Deus signifique
o próprio Cristo, a Quem todos os dias desejamos que
venha e cuja Vinda queremos que aconteça depressa. Do
mesmo modo que Ele é a nossa ressurreição, pois n'Ele
ressuscitamos, assim também pode ser Ele próprio o Reino
de Deus, porque n'Ele reinaremos»
(São Cipriano de Cartago, De dominica oratione,
13: CCL 3A, 97 (PL 4, 545)).
2817. Esta petição é o «Marana Tha», o clamor do
Espírito e da esposa: «Vem, Senhor Jesus»!
- «Mesmo que esta oração não nos tivesse imposto o dever
de pedir a vinda deste Reino, teríamos espontaneamente
soltado este grito, com pressa de irmos abraçar o objeto
das nossas esperanças. As almas dos mártires, sob o
altar de Deus, invocam o Senhor com grandes gritos: "até
quando, Senhor, até quando tardarás em pedir contas do
nosso sangue aos habitantes da terra?" (Ap. 6, 10). Eles
devem, com efeito, alcançar justiça, no fim dos tempos.
Apressa, portanto, Senhor, a vinda do Teu Reino»!
(Tertuliano, De oratione, 5, 2-4: CCL 1, 260 (PL
I, 1261-1262)).
2818. Na oração do Senhor, trata-se principalmente da
vinda final do Reino de Deus pelo regresso de Cristo
(Cf. Tt. 2, 13).
Mas este desejo não distrai a Igreja da sua missão neste
mundo, antes a empenha nela. Porque, desde o
Pentecostes, a vinda do Reino é obra do Espírito do
Senhor, «para continuar a sua obra no mundo e
consumar toda a santificação»
(Cf. Oração Eucarística IV, 118: Missale Romanum,
editio typica (Typis Polyglottis Vaticanis 1970), p. 468
[Missal Romano, Gráfica de Coimbra 1992, p. 539]).
2819. «O Reino de Deus [...] é justiça, paz e alegria
no Espírito Santo» (Rm. 14, 17). Os últimos tempos
em que nos encontramos são os da efusão do Espírito
Santo. Trava-se desde então um combate decisivo entre
«a carne» e o Espírito
(Cf. Gl. 5, 16-25):
- «só um coração puro pode dizer com confiança:
"venha a nós o vosso Reino". É preciso ter passado pela
escola de Paulo para dizer: "que o pecado deixe de
reinar no vosso corpo mortal" (Rm. 6, 12). Quem
se conserva puro nos seus atos, pensamentos e palavras é
que pode dizer a Deus: "venha a nós o vosso Reino"»!
(São Cirilo de Jerusalém, Catecheses mystagogicae,
5, 13: SC 126, 162 (PG 33, 1120)).
2820. Discernindo segundo o Espírito, os cristãos devem
distinguir entre o crescimento do Reino de Deus e o
progresso da cultura e da sociedade em que estão
inseridos. Esta distinção não é uma separação. A vocação
do homem para a vida eterna não suprime, antes reforça,
o seu dever de aplicar as energias e os meios recebidos
do Criador no serviço da justiça e da paz neste mundo
(Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et
spes, 22: AAS 58 (1966) 1042-1044; Ibid., 32:
AAS 58 (1966) 1057; Ibid., 45: AAS 58 (1966)
1065-1066; Paulo VI, Ex. ap. Evangelii nuntiandi,
31: AAS 68 (1976) 26-27).
2821. Esta petição é feita e atendida na oração de Jesus
(Cf. Jo. 17, 17-20), presente e eficaz na Eucaristia; ela
produz o seu fruto na vida nova segundo as
bem-aventuranças
(Cf. Mt. 5, 13-16; 6, 24; 7, 12-13).
III. «Seja feita a vossa vontade assim na terra como
no céu»
2822. É vontade do nosso Pai «que todos os homens se
salvem e cheguem ao conhecimento da verdade» (1ª Tm.
2, 3-4). Ele «usa de paciência [...], não querendo
que ninguém se perca» (2ª Pe. 3, 9)
(Cf. Mt. 18, 14).
O seu mandamento, que resume todos os outros e nos diz
toda a sua vontade, é que nos amemos uns aos outros como
Ele nos amou
(Cf. Jo. 13, 34; 1ª Jo. 3; 4; Lc. 10, 25-37).
2823. Ele «manifestou-nos o mistério da sua vontade,
segundo o beneplácito que nele de antemão estabeleceu
[...]: instaurar todas as coisas em Cristo [...]. Foi
n'Ele também que fomos escolhidos como sua herança,
predestinados de acordo com o desígnio daquele que tudo
opera de acordo com a decisão da sua vontade» (Ef.
1, 9-11). Nós pedimos com empenho que este plano
benevolente se realize por completo na terra, como já se
cumpre no céu.
2824. Foi em Cristo e pela sua vontade humana que a
vontade do Pai se cumpriu perfeitamente e duma vez para
sempre. Ao entrar neste mundo, Jesus disse: «Eu
venho, [...] ó Deus, para fazer a tua vontade» (Heb.
10, 7)
(Cf. Sl. 40, 8-9).
Só Jesus pode dizer: «faço sempre o que é do seu
agrado» (Jo. 8, 29). Na oração da sua agonia,
Ele conforma-Se totalmente com esta vontade: «não se
faça a minha vontade, mas a tua» (Lc. 22, 42)
(Cf. Jo. 4, 34; 5, 30; 6, 38).
Eis por que Jesus «se entregou pelos nossos pecados
[...] consoante a vontade de Deus» (Gl. 1, 4).
«Em virtude dessa mesma vontade é que nós fomos
santificados, pela oferenda do corpo de Jesus Cristo»
(Heb. 10, 10).
2825. Jesus, «apesar de ser Filho, aprendeu, por
aquilo que sofreu, o que é obedecer» (Heb. 5, 8).
Com quanto mais razão nós, criaturas e pecadores, que
n'Ele nos tornamos filhos de adoção! Nós pedimos ao
nosso Pai que una a nossa vontade à do seu Filho, para
que se cumpra a vontade d'Ele, o seu plano de salvação
para a vida do mundo. Somos radicalmente impotentes para
tal, mas unidos a Jesus e com o poder do seu Espírito
Santo, podemos entregar-Lhe a nossa vontade e decidir
escolher o que o seu Filho sempre escolheu: fazer o que
é do agrado do Pai
(Cf. Jo. 8, 29):
- «aderindo a Cristo, podemos tornar-nos um só
espírito com Ele e assim cumprir a sua vontade; desse
modo, ela será feita na terra como no céu»
(Orígenes, De oratione, 26, 3: GCS 3, 361 (PG 11,
501)).
«Considerai como Jesus Cristo nos ensina a ser humildes,
fazendo-nos ver que a nossa virtude não depende só do
nosso trabalho, mas da graça de Deus. Aqui, Ele ordena a
todo o fiel que ora a fazê-lo de modo universal, por
toda a terra. Porque não diz "seja feita a vossa
vontade" em mim ou em vós, mas "em toda a terra": para
que dela seja banido o erro e nela reine a verdade, o
vício seja destruído e a virtude refloresça, e para que
a terra deixe de ser diferente do céu»
(São João Crisóstomo, In Matthaeum homilia l9, 5:
Pg. 57, 280).
2826. É pela oração que podemos discernir qual é a
vontade de Deus
(Cf. Rm. 12, 2; Ef. 5, 17)
e obter perseverança para a cumprir
(Cf. Heb. 10, 36).
Jesus ensina-nos que se entra no Reino dos céus, não por
palavras, mas «fazendo a vontade do meu Pai que está
nos céus» (Mt. 7, 21).
2827. «Se alguém honrar a Deus e cumprir a sua
vontade, Ele o atende» (Jo. 9, 31)
(Cf. 1ª Jo. 5, 14).
Tal é o poder da oração da Igreja feita em nome do
seu Senhor, sobretudo na Eucaristia; ela é comunhão de
intercessão com a santíssima Mãe de Deus
(Cf. Lc. 1, 38.49)
e com todos os santos que foram «agradáveis» ao
Senhor por não terem querido senão a sua vontade:
- «podemos ainda, sem trair a verdade, traduzir estas
palavras: "seja feita a vossa vontade assim na terra
como no céu" por estas e outras: na Igreja como em nosso
Senhor Jesus Cristo; na esposa que Lhe foi desposada,
como no esposo que cumpriu a vontade do Pai»
(Santo Agostinho, De sermone Domini in monte, 2,
6, 24: CCL 35, 113 (PL34, 1279)).
IV. «O pão nosso de cada dia nos daí hoje»
2828. «Dai-nos»: como é bela a confiança dos
filhos, que tudo esperam do Pai! «Ele faz nascer o
seu sol sobre maus e bons e chover sobre justos e
injustos» (Mt. 5, 45); dá a todos os seres vivos
«de comer a seu tempo» (Sl. 104, 27). É Jesus quem
nos ensina esta petição que, de fato, glorifica o nosso
Pai porque é o reconhecimento de quanto Ele é bom, acima
de toda a bondade.
2829. «Dai-nos» é também expressão da Aliança:
nós somos d'Ele e Ele é nosso, é para nós. Mas este
«nós» reconhece-O também como Pai de todos os
homens, e nós pedimos-Lhe por todos, solidários com as
suas necessidades e os seus sofrimentos.
2830. «O pão nosso». O Pai que nos dá a vida não
pode deixar de nos dar o alimento necessário para a vida
e todos os bens «convenientes», materiais e
espirituais. No sermão da montanha, Jesus insiste nesta
confiança filial que coopera com a providência do nosso
Pai
(Cf. Mt. 6, 25-34). Não nos incita a qualquer espécie de
passividade
(Cf. 2ª Ts. 3, 6-13),
mas quer libertar-nos de toda a inquietação ansiosa e de
qualquer preocupação. Assim é o abandono filial dos
filhos de Deus:
- «aqueles que procuram o Reino e a justiça de Deus,
Ele promete dar tudo por acréscimo. Com efeito, tudo
pertence a Deus: nada faltará àquele que possui a Deus
se ele próprio não faltar a Deus»
(São Cipriano de Cartago, De dominica oratione,
21: CCL 3A, 103 (PL 4, 551)).
2831. Mas a presença daqueles que têm fome por falta de
pão revela outra profundidade desta petição. O drama da
fome no mundo chama os cristãos que oram com sinceridade
a assumir uma responsabilidade efetiva em relação aos
seus irmãos, tanto nos seus comportamentos pessoais como
na solidariedade para com a família humana. Esta petição
da oração do Senhor não pode ser isolada das parábolas
do pobre Lázaro
(Cf. Lc. 16, 19-31)
e do Juízo final
(Cf. Mt. 25, 31-46).
2832. Tal como o fermento na massa, a novidade do Reino
deve levedar a terra com o Espírito de Cristo
(Cf. II Concílio do Vaticano, Decr. Apostolicam
actuositatem, 5: AAS 58 (1966) 842).
Há de manifestar-se pela instauração da justiça nas
relações pessoais e sociais, económicas e
internacionais, sem nunca esquecer que não há nenhuma
estrutura justa sem homens que queiram ser justos.
2833. Trata-se do «nosso» pão, de «um»
para «muitos». A pobreza das bem-aventuranças é a
virtude da partilha. Ela convida a comunicar e a
partilhar os bens materiais e espirituais, não por
coação, mas por amor, para que a abundância de uns
remedeie às necessidades dos outros
(Cf. 2ª Cor. 8, 1-15).
2834. «Ora e trabalha»
(Da tradição beneditina. Cf. São Bento, Regra
20;48: CSEL 75, 75-76.114-119 (PL 66, 479-480.703-704)).
«Orai como se tudo dependesse de Deus, e trabalhai
como se tudo dependesse de vós»
(Dito atribuído a Santo Inácio de Loyola; cf. Petrus de
Ribadeneyra, Tractatus de modo gubernandi sancti
Ignatii, c. 6, 14: MHSI 85, 631). Tendo nós feito o nosso trabalho, o
alimento continua a ser uma dádiva do nosso Pai; é bom
pedir-Lhe dando-Lhe graças por ele. Tal o sentido da
bênção da mesa numa família cristã.
2835. Esta petição e a responsabilidade que comporta
valem também para outra fome de que os homens morrem:
«o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que
sai da boca do Deus» (Mt. 4, 4)
(Cf. Dt. 8, 3),
quer dizer, da sua Palavra e do seu Sopro. Os cristãos
devem mobilizar todos os esforços para «anunciar o
Evangelho aos pobres». Há uma fome na terra que
«não é fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a
Palavra do Senhor» (Am. 8, 11). É por isso
que o sentido especificamente cristão desta quarta
petição tem a ver com o Pão da Vida: a Palavra de Deus,
que deve ser acolhida na fé, e o corpo de Cristo,
recebido na Eucaristia
(Cf. Jo. 6, 26-58).
2836. «Hoje» é outra expressão de confiança. É o
Senhor que no-la ensina
(Cf. Mt. 6, 34; Ex 16, 19);
a nossa presunção não poderia inventá-la. Tratando-se
sobretudo da sua Palavra e do corpo do seu Filho, este
«hoje» não é somente o do nosso tempo mortal: é o
«Hoje» de Deus:
- «se em cada dia recebes o pão, cada dia é hoje para
ti. Se Cristo é para ti hoje, todos os dias Ele
ressuscita para ti. Como é isso? "Tu és o Meu Filho, Eu
hoje Te gerei" (Sl 2, 7). Hoje quer dizer: quando Cristo
ressuscita»
(Santo Ambrósio, De Sacramentis, 5, 26: CSEL 73,
70 (PL 16, 453)).
2837. «De cada dia». Esta palavra «epioúsios»
não é usada em mais lado nenhum no Novo Testamento.
Tomada num sentido temporal, é uma repetição pedagógica
do «hoje»
(Cf. Ex. 16, 19-21)
para nos confirmar numa confiança «sem reservas».
Tomada no sentido qualitativo, significa o necessário
para a vida e, de um modo mais abrangente, todo o bem
suficiente para a subsistência
(Cf. 1ª Tm. 6, 8).
Tomada à letra (epioúsios, «sobressubstancial»),
designa diretamente o Pão da Vida, o corpo de Cristo,
«remédio de imortalidade»
(Santo Inácio de Antioquia, Epistula ad Ephesios
20, 2: SC 10bis, 76 (Funk 1, 230)),
sem o qual não temos a vida em nós
(Cf. Jo. 6, 53-56).
Enfim, ligado ao antecedente, é evidente o sentido
celestial: «este dia» é o do Senhor, o do
banquete do Reino, antecipado na Eucaristia que é já o
antegozo do Reino que vem. É por isso conveniente que a
liturgia Eucarística seja celebrada em «cada dia».
- «A Eucaristia é o nosso pão de cada dia [...]. A
virtude própria deste alimento é a de realizar a unidade
a fim de que, reunidos no corpo de Cristo, tornados seus
membros, sejamos o que recebemos. [...] E também são pão
de cada dia as leituras que em cada dia ouvis na igreja;
e os hinos que escutais e cantais, são pão de cada dia.
Estes são os mantimentos necessários para a nossa
peregrinação»
(Santo Agostinho, Sermão 57, 7, 7: PL 38,
389-390).
- O Pai celeste exorta-nos a pedir, como filhos do céu,
o Pão celeste
(Cf. Jo. 6, 51).
Cristo «é Ele mesmo o Pão que, semeado na Virgem,
levedado na carne, amassado na paixão, cozido no forno
do sepulcro, guardado em reserva na Igreja, levado aos
altares, fornece cada dia aos fiéis um alimento celeste»
(São Pedro Crisólogo, Sermão 67, 7: CCL 24A, 404-405
(PL52, 402)).
V. «Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido»
2838. Esta petição é surpreendente. Se comportasse
somente o primeiro membro da frase - «perdoai-nos as
nossas ofensas» - poderia estar incluída
implicitamente nas três primeiras petições da oração do
Senhor, pois que o sacrifício de Cristo é «para a
remissão dos pecados». Mas, de acordo com o segundo
membro da frase, a nossa petição não será atendida sem
que primeiro tenhamos satisfeito uma exigência. É uma
petição voltada para o futuro e a nossa resposta deve
tê-la precedido; liga-as uma expressão: «assim como».
«PERDOAI-NOS AS NOSSAS OFENSAS»...
2839. Começámos a orar ao nosso Pai com um sentimento de
audaciosa confiança. Suplicando-Lhe que o seu nome seja
santificado, pedimos-Lhe para sermos cada vez mais
santificados. Mas, apesar de revestidos da veste
batismal, não deixámos de pecar, de nos desviar de Deus.
Agora, nesta nova petição, voltamos para Ele, como o
filho pródigo
(Cf. Lc 15, 11-32),
e reconhecemo-nos pecadores na sua presença, como o
publicano
(Cf. Lc. 18, 13).
A nossa petição começa por uma «confissão» na
qual, ao mesmo tempo, confessamos a nossa miséria e a
sua misericórdia. A nossa esperança é firme, pois que em
seu Filho «nós temos a redenção, a remissão dos
nossos pecados» (Cl. 1, 14)
(Cf. Ef. 1, 7).
E encontramos nos sacramentos da sua Igreja o sinal
eficaz e indubitável do seu perdão
(Cf. Mt. 26, 28; Jo 20, 23).
2840. Ora, e isso é temível, esta onda de misericórdia
não pode penetrar nos nossos corações enquanto não
tivermos perdoado àqueles que nos ofenderam. O amor,
como o corpo de Cristo, é indivisível: nós não podemos
amar a Deus, a quem não vemos, se não amarmos o irmão ou
a irmã, que vemos
(Cf. 1ª Jo. 4, 20). Recusando perdoar aos nossos irmãos ou
irmãs, o nosso coração fecha-se, a sua dureza torna-o
impermeável ao amor misericordioso do Pai. Na confissão
do nosso pecado, o nosso coração abre-se à sua graça.
2841. Esta petição é tão importante que é a única na
qual o Senhor volta a insistir, desenvolvendo-a no
sermão da montanha
(Cf. Mt. 5, 23-34; 6, 14-15; Mc. 11, 25).
Esta exigência crucial do mistério da Aliança é
impossível para o homem. Mas «a Deus tudo é possível»
(Mt. 19, 26).
«ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO»
2842. Este «como» não é único no ensinamento de
Jesus. «Sede perfeitos como o vosso Pai Celeste é
perfeito» (Mt. 5, 48); «sede
misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso»
(Lc. 6, 36); «dou-vos um mandamento novo:
amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (Jo. 13,
34). Observar o mandamento do Senhor é impossível,
quando se trata de imitar, do exterior, o modelo divino.
Trata-se duma participação vital, vinda «do fundo do
coração», na santidade, na misericórdia e no amor do
nosso Deus. Só o Espírito, que é «nossa vida»
(Gl. 5, 25), pode fazer «nossos» os mesmos
sentimentos que existiram em Cristo Jesus
(Cf. Fl. 2, 1.5). Então, a unidade do perdão torna-se
possível, «perdoando-nos mutuamente como Deus nos
perdoou em Cristo» (Ef. 4, 32).
2843. Assim ganham vida as palavras do Senhor sobre o
perdão, sobre este amor que ama até ao extremo do amor
(Cf. Jo. 13, 1).
A parábola do servo desapiedado, que conclui o
ensinamento do Senhor sobre a comunhão eclesial
(Cf. Mt. 18, 23-35),
termina com estas palavras: «assim procederá convosco
o meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu
irmão do fundo do coração». É aí, de fato, «no
fundo do coração», que tudo se ata e desata. Não
está no nosso poder deixar de sentir e esquecer a
ofensa; mas o coração que se entrega ao Espírito Santo
muda a ferida em compaixão e purifica a memória,
transformando a ofensa em intercessão.
2844. A oração cristã vai até ao perdão dos inimigos
(Cf. Mt. 5, 43-44).
Transfigura o discípulo, configurando-o com o seu
Mestre. O perdão é o cume da oração cristã; o dom da
oração só pode ser recebido num coração em sintonia com
a compaixão divina. O perdão testemunha também que, no
nosso mundo, o amor é mais forte que o pecado. Os
mártires de ontem e de hoje dão este testemunho de
Jesus. O perdão é a condição fundamental da
reconciliação
(Cf. 2ª Cor. 5, 18-21) dos filhos de Deus com o seu Pai e dos
homens entre si
(Cf. João Paulo II, Enc. Dives in misericordia,
14: AAS 72 (1980) 1221-1228).
2845. Não há limite nem medida para este perdão
essencialmente divino
(Cf. Mt. 18, 21-22; Lc. 17, 3-4).
Quando se trata de ofensas (de «pecados», segundo
Lc. 11, 4, ou de «dívidas» segundo Mt. 6, 12), de
fato nós somos sempre devedores: «não devais a
ninguém coisa alguma, a não ser o amor de uns para com
os outros» (Rm. 13, 8). A comunhão da Santíssima
Trindade é a fonte e o critério da verdade de toda a
relação
(Cf. 1ª Jo. 3, 19-24).
E é vivida na oração, sobretudo na Eucaristia
(Cf. Mt. 5, 23-24):
- «Deus não aceita o sacrifício do dissidente e
manda-o retirar-se do altar e reconciliar-se primeiro
com o irmão: só com orações pacíficas se podem fazer as
pazes com Deus. O maior sacrifício para Deus é a nossa
paz, a concórdia fraterna e um povo reunido na unidade
do Pai e do Filho e do Espírito Santo»
(São Cipriano de Cartago, De dominica oratione,
23: CCL 3A, 105 (PL 4, 535-536)).
VI. «Não nos deixeis cair em tentação»
2846. Esta petição atinge a raiz da precedente, porque
os nossos pecados são fruto do consentimento na
tentação. Nós pedimos ao nosso Pai que não nos «deixe
cair» na tentação. Traduzir numa só palavra o termo
grego é difícil. Significa «não permitas que entre
em»
(Cf. Mt. 26, 41), «não nos deixes sucumbir à tentação».
«Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém»
(Tg. 1, 13). Pelo contrário, Ele quer livrar-nos do mal.
O que lhe pedimos é que não nos deixe seguir pelo
caminho que conduz ao pecado. Nós andamos empenhados no
combate «entre a carne e o Espírito». Esta
petição implora o Espírito de discernimento e de
fortaleza.
2847. O Espírito Santo permite-nos discernir
entre a provação, necessária ao crescimento do homem
interior
(Cf. Lc. 8, 13-15; At. 14, 22; 2ª Tm. 3, 12)
em vista duma virtude «comprovada»
(Cf. Rm. 5, 3-5)
e a tentação que conduz ao pecado e à morte
(Cf. Tg. 1, 14-15).
Devemos também distinguir entre «ser tentado» e
«consentir» na tentação. Finalmente, o
discernimento desmascara a mentira da tentação:
aparentemente, o seu objeto é «bom, agradável à
vista, desejável» (Gn. 3, 6), quando, na realidade,
o seu fruto é a morte.
- «Deus não quer impor o bem, quer seres livres [...].
Para alguma coisa serve a tentação. Ninguém, senão Deus,
sabe o que a nossa alma recebeu de Deus, nem nós
próprios. Mas a tentação manifesta-o para nos ensinar a
conhecermo-nos e desse modo descobrir a nossa miséria e
obrigar-nos a dar graças pelos bens que a tentação nos
manifestou»
(Orígenes, De oratione, 29, 15 e 17: GCS 3,
390-391 (Pg. 11, 541-544)).
2848. «Não entrar em tentação» implica uma
decisão do coração: «onde estiver o teu tesouro, aí
estará também o teu coração [...] Ninguém pode servir a
dois senhores» (Mt. 6, 21, 24). «Se
vivemos pelo Espírito, caminhemos também segundo o
Espírito» (Gl. 5, 25). É neste «consentimento»
ao Espírito Santo que o Pai nos dá a força. «Não vos
surpreendeu nenhuma tentação que tivesse ultrapassado a
medida humana. Deus é fiel e não permitirá que sejais
tentados acima das vossas forças, mas, com a tentação,
vos dará os meios de sair dela e a força para a
suportar» (1ª Cor. 10, 13).
2849. Ora um tal combate e uma tal vitória só são
possíveis pela oração. Foi pela oração que Jesus venceu
o Tentador desde o princípio
(Cf. Mt. 4, 1-11) e no último combate da sua agonia
(Cf. Mt. 26, 36-44).
Foi ao seu combate e à sua agonia que Cristo nos uniu
nesta petição ao nosso Pai. A vigilância do
coração é lembrada com insistência
(Cf. Mc. 13, 9.23.33-37; 14, 38; Lc 12, 35-40)
em comunhão com a sua. A vigilância é a «guarda do
coração» e Jesus pede ao Pai que «nos guarde em
seu nome»
(Cf. Jo. 17, 11).
O Espírito Santo procura incessantemente despertar-nos
para esta vigilância
(Cf. 1ª Cor. 16, 13; Cl. 4, 2; 1ª Ts. 5, 6; 1ª Pe. 5, 8).
Esta petição adquire todo o seu sentido dramático,
quando relacionada com a tentação final do nosso combate
na terra: ela pede a perseverança final. «Olhai que
vou chegar como um ladrão: feliz de quem estiver
vigilante»! (Ap 16, 15).
VII. «Mas livrai-nos do Mal»
2850. A última petição ao nosso Pai também está incluída
na oração de Jesus: «não peço que os tires do mundo,
mas que os guardes do Maligno» (Jo. 17, 15). Ela
diz-nos respeito, a cada um pessoalmente, mas somos
sempre «nós» que rezamos, em comunhão com toda a
Igreja, pela libertação de toda a família humana. A
oração do Senhor não cessa de nos abrir às dimensões da
economia da salvação. A nossa interdependência no drama
do pecado e da morte transforma-se em solidariedade no
corpo de Cristo, em “comunhão dos santos”»
(Cf. João Paulo II, Ex. ap. Reconciliatio et
paenitentia, 16: AAS 77 (1985) 214-215).
2851. Nesta petição, o Mal não é uma abstração, mas
designa uma pessoa, Satanás, o Maligno, o anjo que se
opõe a Deus. O «Diabo» («dia-bolos») é
aquele que «se atravessa» no desígnio de Deus e
na sua «obra de salvação» realizada em Cristo.
2852. «Assassino desde o princípio, [...] mentiroso e
pai da mentira» (Jo. 8, 44), «Satanás, que seduz
o universo inteiro» (Ap. 12, 9), foi por ele que o
pecado e a morte entraram no mundo, e é pela sua derrota
definitiva que toda a criação será «liberta do pecado
e da morte»
(Oração eucarística IV, 123: Missale Romanum,
editio typica (Typis Polyglottis Vaticanis 1970), p. 471
[Missal Romano, Gráfica de Coimbra 1992, 543]). «Sabemos que ninguém que nasceu de
Deus peca, porque o preserva Aquele que foi gerado por
Deus, e o Maligno, assim, não o atinge. Sabemos que
somos de Deus e que o mundo inteiro está sujeito ao
Maligno» (1ª Jo. 5, 18-19):
- «o Senhor, que tirou o vosso pecado e perdoou as
vossas faltas, tem poder para vos proteger e guardar
contra as insídias do Diabo que vos combate, para que
não vos surpreenda o inimigo que tem o hábito de
engendrar a culpa. Mas quem a Deus se entrega não tem
medo do Diabo. Porque "se Deus está por nós, quem contra
nós"»? (Rm. 8, 31)
(Santo Ambrósio, De sacramentis, 5, 30: CSEL 73,
71-72 (PL 16, 454)).
2853. A vitória sobre o «príncipe deste mundo»
(Cf. Jo. 14, 30) foi alcançada, duma vez para sempre, na
«Hora» em que Jesus livremente Se entregou à morte
para nos dar a sua vida. Foi o julgamento deste mundo, e
o príncipe deste mundo foi «lançado fora»
(Cf. Jo. 12, 31; Ap 12, 10).
«Pôs-se a perseguir a Mulher» (Ap. 12, 13)
(Cf. Ap. 12, 13-16),
mas não logrou alcançá-la: a nova Eva, «cheia da
graça» do Espírito Santo, foi preservada do pecado e
da corrupção da morte (Imaculada Conceição e Assunção da
santíssima Mãe de Deus, Maria, sempre Virgem). Então,
«furioso contra a Mulher, foi fazer guerra contra o
resto da sua descendência» (Ap. 12, 17). Eis porque
o Espírito e a Igreja rogam: «vem, Senhor Jesus»! (Ap.
22, 17.20), já que a sua vinda nos libertará do Maligno.
2854. Ao pedirmos para sermos libertados do Maligno,
pedimos igualmente para sermos livres de todos os males,
presentes, passados e futuros, dos quais ele é autor ou
instigador. Nesta última petição, a Igreja leva à
presença do Pai toda a desolação do mundo. Com a
libertação dos males que pesam sobre a humanidade, a
Igreja implora o dom precioso da paz e a graça da espera
perseverante do regresso de Cristo. Orando assim,
antecipa na humildade da fé a recapitulação de todos e
de tudo, n'Aquele que «tem as chaves da morte e da
morada dos mortos» (Ap. 1, 18), «Aquele que é,
que era e que há de vir, o Todo-Poderoso» (Ap. 1, 8)
(Cf. Ap. 1, 4):
- «livrai-nos de todo o mal, Senhor, e daí ao mundo a
paz em nossos dias, para que, ajudados pela vossa
misericórdia, sejamos sempre livres do pecado e de toda
a perturbação, enquanto esperamos a vinda gloriosa de
Jesus Cristo nosso Salvador»
(Rito da Comunhão [Embolismo]: Missale Romanum,
editio typica (Typis Polyglottis Vaticanis 1970), p. 472
[Missal Romano, Gráfica de Coimbra 1992, p. 545]) |